Quando profetas como Amós, por exemplo, criticam os cultos, encontros religiosos, ritos e formas de se “achegar a Deus”, o que afinal ele está criticando? Ele está denunciando a forma de religião predominante em Israel, sem entrar no mérito de dizer “toda religião”, ou “a religião”. Talvez uma coisa que esteja faltando às nossas genéricas classificações é “dar nome aos bois”. E isto Amós faz. Observem o seguinte trecho (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson):
Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero (Am 5.21-24 – Grifos meus).
A religião criticada por Amós é covarde e superficial, porque marginaliza o que realmente importa e põe no centro o trivial e menos relevante. Confunde retidão com justiça própria e santidade com abstinência; faz dos sacrifícios e rituais o último bastião da espiritualidade, dissociando-a completamente da vida, da misericórdia e da sede por justiça. Afirma uma sede incontrolável por Deus e seus mandamentos, mas é incapaz de reconhecê-lo no próximo, no diferente, no samaritano à beira do caminho.
Daí, muitos desses encontros, congressos, convenções e projetos religiosos aos quais se refere o profeta, terem se tornado, para Deus, um negócio insuportável e indigno de atenção. Mais “culto ao ego” que outra coisa. Daí a pergunta: “Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim?”. E o que é viver e cantar “para Deus”?
É anelar por Deus com todo o nosso ser; é deixar ser movido e tocado pelas coisas que mobilizam o coração de Deus (o que sabemos por meio da Palavra); é desejar ardentemente que sua vontade seja feita tanto aqui na terra, como no céu; é lutar para que a justiça corra como rio que não seca; é buscar viver em integridade e afastar ao máximo do nosso caminho a hipocrisia. Mas, como? E seria isto outra forma de religião? Não sei, talvez, quem sabe. Linguagem, tudo passa por ela.
Não é novidade para ninguém que muitos sistemas religiosos se alimentam da hipocrisia e não subsistem sem ela. Muitas igrejas têm sido – até que provem a si mesmas e ao mundo o contrário – ao invés de centros de misericórdia e compaixão e comunidades de reino, covis de hipocrisia, onde o livre pensar é reprimido (sobretudo em assuntos como sexualidade, por exemplo), e o discordar (mais ainda da liderança e da orientação doutrinária) é tratado como pecado. Exceções à regra (os remanescentes) existem, é claro, mas com a sina de ter que “nadar contra a maré”, caso não (ou até que) se deixem corromper pelo “se não pode vencê-los, junte-se a eles”.
A hipocrisia vai, dessa forma, recebendo outros nomes, e vai sendo ornamentada com vestes outras, mais sofisticadas quem sabe (embora não menos vorazes) e se torna peça indispensável ao bom funcionamento da engrenagem, mascarada pelo discurso de que assim estaremos “no centro da vontade de Deus”. Como corolário disso e de outras tendências já bastante enraizadas, como a privatização da espiritualidade e a religião de consumo, as pessoas vão à igreja apenas para nutrir o lado “lúdico” da fé, que congrega e agrega a massa dos que querem distância do conflito e que relega aos ditos apóstatas, hereges e perdidos o lado trágico (e sombrio) da existência.
A hipocrisia tenta eliminar o sofrimento a todo custo e promover uma espécie de narcótico gospel como sustentáculo para uma fé “que funciona”. Uma fé que desconhece a compaixão, porque só age para aliviar a dor; que tem desconfiança em relação ao mistério, ao desconhecido e às incertezas; que pensa que testemunhar é igual a fazer propaganda de sua fé, e se distancia da prática da justiça por estar tão ofuscada com as celebrações e homenagens, públicas e privadas, ao “seu Deus” – o “meu Deus isso”, o “meu Deus aquilo”.
Essa fé é substrato da hipocrisia. Irracional e inconscientemente, muitas vezes, ela canta: “Hipocrisia, eu quero (eu preciso de) uma pra viver!”. Nos lugares onde ela é vivida, as palavras de Jesus – “Acautelai-vos do fermento dos fariseus!” – ecoam como gritos em uma terra de surdos.
Porque acautelar-se, talvez, implique em passar pela via da admissão honesta de que, no fundo, todos (digo, os que nos servimos do sistema religiosos, ou os que se encontram, como eu, em processo de libertação de suas entranhas) somos um pouco como os fariseus ou hipócritas – o que seria um total absurdo e falta de espiritualidade, para muitos. Se toda mulher é meio Leila Diniz, como diz a canção “Todas as mulheres” de Rita Lee, então (digo isso contra meu melhor senso) todo crente é meio hipócrita e, por natureza, religioso (no sentido que Amós abomina), até que prove o contrário lutando contra tal orientação.
Jonathan
(Imagem extraída de: http://uma-verdade-inconveniente.tumblr.com/)
"E o que é viver e cantar 'para Deus'? É anelar por Deus com todo o nosso ser"
ResponderExcluirEsta me parece uma resposta hipócrita também. Não existe esse negócio 'com todo o nosso ser', isso é utopia burra.
Ivan Cordeiro
Prezado Ivan,
ResponderExcluirnão sei de onde surge esta sua arrogância (nova para mim, na verdade) de chamar de "burra" e "hipócrita" a minha utopia. Entendo que é um ideal e uma tentativa de viver a integralidade do Evangelho, que indica uma busca por Deus não só com uma parte, mas com tudo o que somos, como diz Deuteronômio (6:5 - TEB): "Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todo o teu ser, com todas as tuas forças".
Em outras palavras, não seria isto anelar (buscar) a Deus com todo o nosso ser? A expressão "todo o meu ser" não implica que já esteja tudo resolvido e consolidado, pois, se fosse isso, a expressão "anelo", isto é, "aspirar, querer, desejar com ansiedade", não faria sentido aqui, faria?
Enfim, como minha utopia é burra mesmo, espero quem sabe uma reação mais inteligente de sua parte para me ensinar como deve ser. Quanto ao "hipócrita", todos somos um pouco, do contrário não haveria razão para escrever e lutar contra a hipocrisia. Visto esta carapuça, embora com muita vergonha...
Jonathan
Só acredito que é impossível 'com todo o nosso ser' tentar uma aproximação de Deus. E quando se alardeia dessa forma uma possível aproximação, corremos o risco de cair em outro extremo. Apenas isso Jonathan.
ResponderExcluirNão concordo com tal palavra, "alarde". Não alardeei nada. Aceito sua explicação. Mas, ainda assim, evoco, apenas para efeito de cuidado de nossa parte, o perigo da linguagem nas palavras de Hobsbawm: "Palavras inocentes ditas por trás de teclados aparentemente inócuos podem se transformar em verdadeiras sentenças de morte". Aceito também que possa ter mudado de perspectivas no que diz respeito a integralidade; admito que o uso desse predicado (como slogan apenas, sem substância e reflexão) é burro e ineficiente; mas recuso admitir que esse tenha sido o caso de meu texto (basta compará-lo com outras coisas que já escrevi, até mesmo sobre a Missão Integral), a menos que seja convencido disso. Como não foi o caso, permanecemos na mesma...
ResponderExcluirRespeitosamente,
Jonathan
Mas por mais que o seu texto não tenha isso como 'slogan, é possível esta interpretação ao ler. Todavia, sou seu leitor, e conheço um pouco sobre suas ideias a respeito disso, apenas comentei algo que ficou subentendido, enfim.
ResponderExcluirNo mais, o texto só se realiza a partir do olhar interpretativo do
leitor, e sem o qual ele inexiste(Stanley Fish).
Concordo com Stanley Fish, e sou grato por ter leitores (ainda que poucos, especialmente para meus devaneios). Mas dizer que uma interpretação é possível, não significa que ela seja plausível, a menos que demonstre ser. O escrito público é tanto um convite para o leitor e sua interpretação, como para o conflito entre interpretações. Que aprendamos a alimentar conflitos de maneira saudável e honesta.
ResponderExcluirAbs,
Jonathan
Jonathan, creio que você trabalhou um pouco mais a questão da linguagem, que não é mencionada no Blog do Fabricio Cunha. Mas ainda assim, creio que fica uma lacuna em nosso vocabulário.
ResponderExcluirDeve ter um nome para este conjunto de coisas que se fazem que contrariam os princípios de Cristo que foram denunciadas nos religiosos de sua época.
A absolutização da tradição, a relativização do ser, a valorização da aparência, a paixão pelo poder e status institucional, o ego aumentado pela nossa posição em espiritual (Nova criatura vs ímpio), enfim, há bastante coisa destas que Jesus não aprovava em seu tempo.
A tentativa de chegar a Deus por sacrifício humano é uma dessas coisas, mas acho que é só o início de conversa.
Encontramos isso em outra língua, com outro nome (que não, religião), ou então no original?
Prezado Sérgio,
ResponderExcluirconcordo que tudo isso que você menciona invariavelmente tem levado o nome de religião. Mas esse lance da linguagem a meu ver é mesmo o que pega. Se não soubermos fazer o uso criterioso dela, ficaremos discutindo sexo dos anjos enquanto todo mundo tá falando quase a mesma coisa, mas com termos diferentes. Quem quiser usar o termo "religião" com conotação positiva, que explique bem o que está entendendo por isso. O mesmo vale para quem quer que faça o uso desse termo tão polissêmico com outras possíveis conotações. O que não dá é pretender esgotar tudo em um conceito, pois dessa forma não avançaremos uma jarda sequer diante da barreira da pretensiosidade. Somos cativos de linguagem, diria Ellul, e sedentos por nos cerrar em conceitos. Mas, se vamos continuar usando, dê-mos o eles o peso que realmente têm, nem mais, nem menos, sem pretender universalizar um único uso, e um único entendimento possível.
Um abraço,
Jonathan