terça-feira, 25 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 3)

4. Alegria e tristeza

Na vida e pensamento de Nouwen, como já disse antes, pode-se notar um rompimento com dualismos perniciosos. Dentre eles o dualismo que opõe alegria e tristeza. Em nosso mundo, costuma-se pensar que a alegria não pode conviver na mesma casa em que a tristeza está. Assim, a alegria significaria ausência de tristeza e a tristeza, ausência de alegria. Quando, porém, olhamos para a vida em sua complexidade, vemos que muitas vezes elas andam juntas e estão até misturadas. E diria mais: a alegria que se vive se torna mais profunda quando se conhece o que é tristeza. O próprio Jesus, como Nouwen diz, “foi o homem das dores, mas também o homem da total alegria”. Aprendi com ele, portanto, que “o cálice da vida é o cálice da alegria tanto quanto é o da tristeza. É o cálice no qual tristezas e alegrias, dor e felicidade, luto e dança nunca se separam. Se as alegrias não pudessem estar onde as tristezas estão, o cálice da vida jamais poderia ser bebido”.

5. Comunidade

Vida cristã é vida em comunhão. Comunhão que cria a comunidade – a partir do desejo que Deus cria em nós: “O Deus que vive em nós faz com que reconheçamos o Deus em nossos semelhantes” – e que se manifesta em formas concretas: no perdão, na reconciliação, no gesto de amor, compaixão, preocupação com o outro, na repreensão e no conflito, na intimidade, na amizade, no partir do pão. Com Nouwen, aprendi que a eucaristia é muito mais que mero ritual, é um “gesto humano” que relembra uma presença, a do Cristo com quem me comprometo, e a do irmão e da irmã com os quais me envolvo por causa de Cristo. Segundo Nouwen, mais do que a eucaristia, a “vida eucarística” é que faz a diferença no dia a dia, a cada gole, a cada gesto, como uma celebração constante no seio da graça e na casa de Deus, que existe onde quer que dois ou três estejam reunidos em seu nome. Essa compreensão permitiu com que Nouwen respirasse e vivenciasse a experiência de ser igreja até mesmo em reuniões íntimas com familiares e amigos. Ele disse: “Todos os dias celebro a eucaristia. Às vezes na igreja de minha paróquia, com centenas de pessoas presentes, às vezes na capela de Daybreak, em Toronto, Canadá, com minha comunidade, às vezes em um quarto de hotel, com alguns amigos, e às vezes na sala de estar de meu pai, apenas ele e eu”.

A mensagem de Nouwen sobre a comunidade dá o tom de sua espiritualidade: não há um só ser humano que não receba o convite permanente para participar do banquete de celebração do amor do Pai. Sua paixão por Jesus e pelas pessoas se expressou em um enorme apreço e fidelidade à Igreja, como pouco se vê em nossos dias. Embora fosse um contemplativo crítico da realidade, era raro ver Nouwen fazendo críticas muito duras ou usando de acidez e sarcasmo para falar da Igreja. Mesmo em sua verve profética era possível perceber uma ternura sábia e um olhar esperançoso. As maiores transgressões de Nouwen eram transgressões de si mesmo, sempre que falava abertamente de seus pecados, idiossincrasias e temores. Essa foi também a sua maior arte, seu jeito de ser discípulo e ser humano, e sua forma de tomar a cruz.

Jonathan

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 2)

O que aprendi com Nouwen?

Dividirei esta breve incursão naquilo que aprendi com Nouwen em 5 temas.

1. Vocação

Aprendi que, embora seja Deus quem chame, confirme e capacite – o que dá um peso enorme à questão – o processo de despertar para e prosseguir em uma vocação não é estático, mas dinâmico. A certeza do caminho vem enquanto caminhamos. Não somos chamados primordialmente para um lugar ou uma função, mas para andar com Jesus em serviço ao seu reino. Isto significa que a pergunta pela vocação nunca será respondida inteiramente; na caminhada estaremos sempre tentando discernir os caminhos. É o que Nouwen fez sua vida toda, como em sua passagem pela América Latina, ou em sua trajetória de uma carreira acadêmica prestigiada em Harvard para uma vida fora dos holofotes entre os deficientes da Arca, em Toronto. Assim ele resumiu: “Tentei discernir a voz de Deus; e, no meio de uma grande variedade de minhas respostas interiores, tentei encontrar o caminho para ser obediente àquela voz”.

2. Sofrimento e fragilidade.

A vida do ser humano (e do cristão) pode não ser (e como poderia ser?) só sofrer, mas indubitavelmente envolve sofrer. Aprendi com Nouwen que privar-se ou tentar se proteger do sofrimento é como que privar-se da própria vida – e de tudo o que podemos aprender com ela. Entendi que o sofrimento pode nos fazer mais humildes enquanto gente – ou uma gente da mais amarga espécie, dependendo de como o encaramos. O sofrimento me aproxima da, e me ensina a aceitar a, fragilidade de minha condição. Também me aproxima de Deus e me faz vê-lo como um Todo-Poderoso vulnerável, que nem sempre vai me livrar das dores da vida e do mundo, mas que sofrerá comigo sempre que tiver de enfrentá-las, oferecendo inexplicável conforto. Aprendi também que mesmo um ser ferido pode se tornar fonte de cura para as pessoas. E que, como ministro da cura, preciso desfazer-me da ilusão de que serei capaz de explicar o mistério da dor do outro ou de aboli-la; ou de que poderei conduzir alguém para fora do deserto sem tê-lo experimentado em minha própria pele. O sofrimento, assim, pode ser um convite “a depositar nossas feridas e mãos maiores”, e para ver “Deus sofrendo por nós” e nos chamando a compartilhar este sofrer de seu amor por um mundo ferido.

3. Integridade

Aprendi com Nouwen que ser cristão tem a ver com desenvolver-se como um ser humano inteiro, aceitando-se a si mesmo como amado de Deus, da maneira como se é e com a vida que lhe foi dada. Isto não significa que tenho que me resignar a um modo de ser torto. Pelo contrário, implica que toda a minha vida pode ser abraçada como um processo em que, pela graça, estou a caminho de me tornar a pessoa que Deus projetou; nada vem fácil ou é instantâneo e nem se confunde com o meramente superficial. Parte-se, portanto, da compreensão de que o ser como um todo, bem como “tudo na vida, por mais insignificante ou difícil que possa parecer, abre-nos para a obra de Deus em nós”.

(Continua...)
Jonathan

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Coisas que aprendi com Henri Nouwen (Parte 1)

Escrevi um artigo há certo tempo, falando de modo resumido sobre Henri Nouwen como um modelo de vida e espiritualidade radicais, tratando um pouco de sua vida, formação, fatos marcantes de sua trajetória e pensamento (ler aqui). Não menos resumidamente, quero partilhar algo mais sobre Nouwen só que de um jeito mais pessoal – forma predominante em seus escritos. Como eu o enxergo? Por que me tornei tão fascinado por sua vida e escritos? Que coisas tenho aprendido com ele?

Quem foi Nouwen?

Usando uma expressão de Zygmunt Bauman, para mim Nouwen foi um “artista da vida”. Primeiramente porque ele foi alguém profundamente fascinado pela vida e pelas pessoas, pela conexão e pelos relacionamentos. Parte de sua veia artística está em ter conseguido pintar de modo tão brilhante, sensível e inspirador sua teia particular de relações com a vida e com Deus. Um resumo das coisas que Nouwen mais amava fazer pode ser encontrado, a meu ver, em suas próprias palavras no Diário de seu último ano sabático: “Escrever livros, fazer amigos, criar comunidade, partilhar histórias”.

Nouwen foi um santo-homem. Sua santidade estava não em feitos sobrenaturais, mas na forma íntegra com que efetuou as coisas mais naturais da vida – como amar, orar, sofrer, se alegrar, celebrar, morrer. Ele foi um pastor sensível e compassivo, atento a cada encontro e a singularidade de cada pessoa. Mas também foi um ministro vulnerável, ao ponto de escancarar sua vida, suas feridas e limitações de um modo às vezes até constrangedor pra quem o lê.

Foi um discípulo radical e apaixonado de/por Jesus. Extremamente consciente de sua dependência de Deus e da comunidade e também de seu inacabamento, nunca deixou de estar em busca, a caminho, ansioso por entender o que Deus queria para ele e para onde desejava conduzi-lo. A ele cabem as sábias palavras do frei Carlos Mesters: “A luz só se faz é na travessia e na escuridão”. O mais admirável é que tanto a luz quanto a escuridão de Nouwen serviram como canais de benção e de cura para muitas pessoas.

Por que Nouwen?

Em Nouwen descobri um modelo de espiritualidade não focado em performances para Deus, mas em vida, abertura e entrega. Uma vida baseada na honestidade, uma abertura besuntada de autenticidade, e uma entrega movida pelo amor e pela paixão de Cristo. Ele foi e continua sendo um modelo atual, pois conseguiu reunir em sua pessoa uma intelectualidade frutífera com o sentimento sincero, de quem vive intensamente tanto “por fora” quanto “por dentro”, e a experiência da orientação sábia junto com uma postura de constante quebrantamento diante de Deus e da vida. Sua existência foi um protesto contra o superficialismo e um rompimento com os dualismos perniciosos que se propagaram no cristianismo. Nele vejo o paradoxo belo de uma coerência desarmônica, de uma resiliência frágil e de uma melancolia esperançosa.

Jonathan

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Em louvor à fragilidade

“Mas temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2Co 4.7).

Quando penso em tesouro duas imagens pelo menos me vem à mente: uma delas é a de uma caça ao tesouro, escondido em um baú nos recônditos de uma caverna escura e perigosa ou nas profundezas do mar; a outra é a dos cofres de segurança máxima, cheios de paredes de proteção especial, códigos e senhas quase intransponíveis.

As imagens são diferentes, mas têm algo em comum: em ambas o acesso ao tesouro é quase impossível, visto que há uma fortaleza protetora, imponente, complexa... A imagem de Paulo no texto acima é bem diferente. Ele fala de um “tesouro” (evangelho e a companhia do poder divino) em “vasos de barro” – que designa a nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sempre sujeita à quebra.

Temos aqui então um contraste, uma dessas ironias divinas: o eterno poder, que não pode ser contido (do contrário, não seria eterno) escolhendo precisamente o que há de mais fraco e incerto para “se abrigar”. E a pergunta é: por quê? Paulo mesmo dá a resposta: é para mostrar que a excelência desse poder vem de Deus, e não da gente.

Trocando em miúdos: temos um tesouro (poder), mas esse tesouro não vem de nós, nem é para a nossa glória e nem nos faz triunfantes no mundo. Pelo contrário. Paulo segue afirmando nos versos seguintes que “em tudo” somos perplexos, atribulados, perseguidos, abatidos, embora não o bastante para sermos destruídos, desanimados, angustiados e totalmente desamparados.

Curioso, não? Esse poder, que não é nosso, não nos faz mais poderosos que ninguém, tampouco imunes ao sofrimento de qualquer ser humano – agregando ainda um sofrer de outra espécie, por ser cristão. Mesmo tendo um tesouro, nunca deixamos de ser simples vasos! E o vaso não existe para proteger a integridade do tesouro, mas é o tesouro que é oferecido para proteger a integridade do vaso, a despeito de suas eventuais “quebras”.

Não somos, portanto, defensores ou detentores do tesouro; ele não precisa de sentinelas ou guardiões, nem de Indiana Jones “gospel”; e não somos nós que resplandecemos, mas ele resplandece através de nós. O vaso não existe ainda para se transformado em cofre forte, mas existe para morrer: “Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo” (4.10).

Penso que o que Paulo está querendo aqui, dentre outras coisas, é nos convidando a rever nossa teologia do poder e reservar nela um lugar especial para a aceitação jubilosa da fraqueza. Somente quando assumirmos nossa fragilidade humana, o poder de Deus se aperfeiçoará em nós a fim de que participemos da transformação que o Espírito já vem realizando no mundo, muitas vezes sem a nossa “ajuda” pretensiosa.

Jonathan

(Imagem: "Fragility", by Dawne Olson)