terça-feira, 7 de março de 2017

Livrai-nos dos consoladores molestos!


Vocês falam como especialistas. Até parece que, quando morrerem não sobrará ninguém para ensinar outros a viver. (Jó 12:1, A Mensagem)

Em meu tópico anterior falei sobre “o fazer que há no saber”. Neste falarei sobre os limites que a complexidade da vida impõe ao saber, e o transpassar desses limites por quem acha que o saber (teológico) tem resposta para tudo, pode sistematizar tudo, e até mesmo possui presciência sobre a vida, sobretudo a dos outros. Meu estudo de caso aqui será sobre Jó e seus “amigos”, aos quais chamarei aqui de “doutores destino” – em clara alusão ao personagem “Doutor Destino” das histórias em quadrinho da Marvel, cuja característica principal é o orgulho exacerbado. Não fica difícil, portanto, identificar o alvo principal de minhas preocupações aqui: o chamado “orgulho intelectual”. 

O livro de Jó é como uma grande peça teatral, com personagens marcantes assumindo falas em diferentes atos. Não se trata de um livro doutrinário ou sistemático, mas de uma poderosa e inquietante parábola sobre a vida e o sofrimento humanos. O enredo conhecemos bem: Jó, um homem íntegro e fiel a Deus, tinha uma vida próspera e era um dos homens mais importantes de todo o Oriente. Indo prestar contas ao Eterno, Satanás coloca a integridade e fidelidade de Jó em cheque, dizendo que ele se portava assim porque tudo ia bem com ele. “Retire tudo o que ele tem, e veremos onde vai parar essa fidelidade!”. O Eterno, então, permitiu que tudo lhe fosse retirado, porém, sem nenhuma consequência fatal. 

E assim se fez, tudo na vida de Jó entrou em colapso como num efeito cascata: primeiro foram os bens materiais, depois a família e, por fim, a saúde de Jó. E nada de Jó pecar. Vieram seus amigos (Elifaz, Bildade e Zofar), que permaneceram a seu lado em silêncio, velando-lhe o profundo sofrimento durante setes dias e sete noites. Ao final daquele tempo, Jó, não suportando mais a dor e miséria absurdas em que caíra, quebrou o silêncio e começou a amaldiçoar o dia de seu nascimento, questionar a razão de ser de sua existência e a despejar toda a sua revolta em Deus, colocando em pauta a questão do “sofrimento do justo”, tema recorrente nos livros de sabedoria do AT.

Sua indagação central foi: por que Deus permitiu que eu, um homem reto e bom, viesse a sofrer tamanho revés, tamanha miséria e a experimentar tão grande amargura na vida, a ponto de desejar a própria morte? Onde foi que eu errei para que a morte invadisse minha vida dessa maneira? Como o infortúnio lhe atingiu de modo certeiro e avassalador, Jó não tinha em quem descontar, de modo que o alvo mais natural nesse caso era o Eterno, a quem ele servia e era fiel. “Por que, Deus!? Por que eu? Por que dessa forma tão cruel?”. Quando o infortúnio e as más notícias batem à porta, as respostas tendem a sair logo correndo pela janela. A sensação de solidão e abandono é recorrente. E quem mais poderia suportar-nos nessa hora senão o Eterno?

Os “amigos”, porém, não entenderam assim, e logo também saíram das sombras e do silêncio, bancando os paladinos de Deus, mas de fato desempenhando o papel de “advogados do Diabo”. Sabe aquele grupo que liga as antenas logo que vê alguém falando de Deus e não perde a oportunidade de pular no pescoço de quem quer que possa estar dizendo algo que venha “machucar Deus” (ou o Deus de sua ortodoxia ou de sua teologia)? Os amigos de Jó foram capazes de ficar em silêncio compreensivo só enquanto o amigo igualmente permanecera em silêncio, como se sua dor fosse menos “doída” e (para eles) menos escandalosa porque silente. Mas quando ele passou a gritar e a lamentar, eles saíram da condição de amigos para a de juízes e “doutores destino”, sabedores do que Deus pensa e porque as coisas acontecem como acontecem, implementando uma lógica própria: a de causa e efeito. A teologia dos amigos de Jó, como bem notou Caio Fábio em seu livro O enigma da graça, é a “teologia moral de causa e efeito”. 

Para eles, a vida de pessoas inocentes e íntegras de fato não pode acabar em desgraça, porque elas não semeiam isso; quem semeia bondade só colherá bondade. Para eles, somente “aqueles que cultivam o mal e semeiam a desgraça colhem exatamente isso”, como disse Elifaz (Jó 4:8). Segue-se que o problema de Jó e a situação em que se encontrava tinha uma causa ou razão certa: é porque ele estava em pecado, e é porque não era justo nem íntegro como reivindicava ser. De fato, a sabedoria bíblica atesta que “não há uma única pessoa perfeita no mundo; nenhuma que seja pura e sem pecado” (Ec 7:20). A retidão de Jó indicava um caminho de obediência, mas não uma vida sem pecado. Inteiramente diferente é, porém, dizer que ele caiu nessa situação porque era pecador; se assim fosse, como explicar a situação de tantas pessoas que vivem em pecado, mas não sofrem o mesmo tipo de consequência? O problema do sofrimento do justo é, portanto, consentâneo ao problema da prosperidade do ímpio. 

De mais a mais, com um raciocínio tão simplista baseado na lei do “toma lá, dá cá” (alguém só recebe aquilo que realmente merece), os conselhos não poderiam ser menos molestos do que os que foram por eles apresentados, como os de Zofar a Jó: é o seguinte, você pecou, fez besteira e isso é um fato, do contrário não poderia estar na situação em que está. Então, abra o coração para Deus e peça ajuda; se você abandonar o mal, limpar das mãos o pecado, “você poderá encarar o mundo sem sentir vergonha e andar seguro sem medo nem culpa. Você esquecerá das suas angústias: elas não passarão de cagas lembranças”. E mais: “o sol vai raiar e brilhar para você, e toda sombra será dispersa ao romper da manhã” (Jó 11:13-16). Simples assim. Praticamente uma formula mágica! Ora, a resposta de Jó não poderia ser outra e provavelmente ocorreria a qualquer ser humano sensível, e se revela no sentimento de traição e desamparo: “Alguém desesperado pelos amigos deveria ser amparado, mesmo que desistisse de confiar no Todo-poderoso (...). Vocês apontam o que há de errado em minha vida, mas respondem à minha angústia com conversa fiada (Jó 6:14, 26).

As respostas honestas de Jó me lembra das considerações de C. S. Lewis em seu livro A anatomia de uma dor, escrito por ele em seu período de luto pela morte de sua esposa. Ali Lewis revela que em sua busca por Deus em meio a luto, tudo o que conseguiu encontrar foi “uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio”. Também assevera que a dor não diminui nem o tormento vai embora com consolos e conselhos molestos, por mais bem-intencionados que sejam, nem com “evasivas”, discursos com ornamentação rebuscada ou explanações teológicas de toda sorte. Em sua experiência, o luto não foi menor porque alguém disse que sua esposa estava melhor porque estava com Deus. E conclui acertadamente que, “quando você está lidando com Deus, é possível cometer toda sorte de equívocos”. Jó podia (e tinha, de certo modo, permissão para) estar equivocado porque ele falava de um lugar equívoco, o lugar da dor excruciante. Como cobrar bom senso e doutrina reta de alguém nessa situação? Mas o equívoco dos “amigos” foi maior, pois falavam de Deus priorizando a retidão da letra e não a singeleza do coração. Se o coração for duro, insensível e indolente, a letra, mesmo quando reta, será letra morta.

Não é à toa que Jesus não veio chamar gente (que se acha) justa e reta, mas pecadores ao arrependimento. Usando a metáfora de Brennan Manning, ele não veio para a elite espiritual e teológica, o pessoal da “auréola apertada”, mas para os maltrapilhos, isto é, a turma da “auréola torta”. Só quem passa pela grande miséria – ou que ao menos reconhece sua miséria – pode também passar pelo grande arrependimento. Portanto, minha oração final é simples: que Deus me ensine a fazer teologia a partir do lugar da incompletude, da falta e, por isso, do arrependimento. Que Ele me livre dos consoladores molestos, sim! Mas que me livre, sobretudo, de me tornar um; que afaste de mim o orgulho intelectual. Pois não há risco humano mais óbvio que o de nos tornamos apenas mais uma variação ou versão sofisticada daquilo que mais abominamos. 

Jonathan

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