A vida intelectual, como a pensa João Batista Libanio (2006, p. 81), “só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”. De acordo com ele, como filhos/as de uma época e uma cultura específicas (na qual se insere a religião) todos/as fazemos parte de uma tradição (ou mais que uma). Por exemplo, o que concebemos como “fé” (falando de seus conteúdos) é fruto de uma vivência dentro de uma tradição, em que a experiências individuais alimentam e são alimentadas por experiências coletivas. Entretanto, como reitera Libanio, “viver só da tradição”, tratando-a de modo rígido ou definitivo, “termina em um processo repetitivo”. Aqui entra o que ele chama de atitude de abertura enquanto “capacidade de assumir uma autocrítica da própria tradição de dentro dela” (Ibid., p. 81).
Essa atitude se opõe, na visão de Libanio, tanto a uma concepção puramente ortodoxa, que trabalha com a perspectiva excludente de sim ou não, ou, ou; quanto também uma concepção relativista, que desqualifica a tradição assumindo uma postura em que anything goes, ou qualquer coisa vale, e que pode facilmente ser trocada por outra coisa no próximo momento. Ao invés, ele propõe uma concepção dialética, que “busca a síntese entre a tradição e a novidade da experiência, chegando a novas formas de verdade. Retém a positividade da tradição, nega-lhe a negatividade e assume do presente sua força crítica positiva. Vão assim construindo novas e mais ricas sínteses de verdades” (Ibid., p. 82).
Nesse sentido, uma tradição nunca deve se impor como absoluta, e toda vez que o faz recai no risco da idolatria. Isso, porém, aconteceu e ainda acontece na história das religiões, e do cristianismo em particular. Basta recordar o período da Reforma Protestante, por exemplo, que teve como uma das razões principais de sua ocorrência a elevação da igreja, sua ordem, seus dogmas, à condição de absoluta, inquestionável, acima da própria Palavra de Deus. Somente através dela se podia conhecer o verdadeiro Deus e a legítima mensagem das Escrituras. Contra isso se impôs o que Paul Tillich (2006, 1992) chamou de princípio protestante. Segundo ele, “o princípio protestante é a reafirmação do princípio profético em seu ataque contra uma igreja que se considerava absoluta e que, por isso, se encontrava demoniacamente deformada” (Tillich, 2005, p. 234), ou, parafraseando o que ele disse em outro lugar (Tillich, 1992, pp. 209-221), trata-se do protesto divino e humano contra toda tentativa de absolutizar o que é apenas relativo e temporal.
Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz, a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – lugar de pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser uma Babilônia ou uma sucursal do inferno.
Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz, a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – lugar de pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser uma Babilônia ou uma sucursal do inferno.
Contra essa tentação, meu propósito aqui é de fazer uma síntese sobre o que significa permanecer crendo, escolhendo a fé, diante das eventuais desconstruções pelas quais passamos em meio a um universo de descrença e ceticismo, ou mesmo de dúvidas e incertezas que nos cercam, tanto no plano intelectual (teológico e filosófico) quanto no plano existencial. Para tanto, gostaria de propor, como exercício de reflexão, o que aqui estou chamando de “arte de perder chãos”, cuja premissa é a de uma desconstrução sadia e intencional de todos os solos provisórios sobre os quais assentamos nossas crenças. Pode ser representado pela rudimentar figura que abaixo se encontra:
Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:
1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que, embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos fé. Essa fé, porém, não nos desistoriciza nem nos desumaniza, mas nos comissiona, segundo a premissa de encarnação vigente no evangelho, a entrar na história como antecipadores da eternidade através de gestos que Paulo chamou de “permanentes”: a fé, o amor e a esperança.
2. A caminhada humana, porém, nos impõe a busca por sentido e, assim, a criação de sentidos possíveis para aquilo que acreditamos e sobre o porquê de acreditarmos nessas coisas. Esses são o que poderíamos chamar de “chãos finos e frágeis”, porque provisórios.
3. Esses, por sua vez, são constituídos por manifestações temporais e impermanentes na esfera da cultura – ética, estética e religião. A cultura humana, inventada e invencionista, incita a cada ser humano a dar formas – símbolos, mitos, representações do “real”, e, par os de fé, da própria fé, da religião e de Deus, expressas pelos conteúdos, dogmas, crenças, tradição.
4. Esses chãos, como já disse, são frágeis e provisórios – e essa é a sua propriedade. O ato de tentar equipará-los à própria realidade ou ao incondicional é parte do antropomorfismo, de modo que a crítica de Feuerbach à religião torna-se válida nesse caso: a realidade (ou o incondicional) é fruto da consciência que o homem tem (ou imagina ter) de si mesmo. A consciência que o ser humano tem da realidade, porém, não é capaz, por mais que pretenda, dar conta ou espelhar a própria realidade. Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008), desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. A realidade não se dá a conhecer plenamente, não é inteligível em sua essência. Na mesma medida em que é ininteligível, também é cruel (ou seja, dura). Daí a cegueira voluntária consiste no efeito psicológico ilusivo produzido pelo efeito do espelho: no encontro com o outro da realidade (seu duplo, sua representação), penso estar em contato com ela mesma (Rosset, 2008, p. 91). O mesmo pode funcionar para o relacionamento da pessoa de fé com o incondicional: a ilusão, nesse caso, consiste na pretensão de falar por Deus, ou de que a imagem verdadeira de Deus está expressa na ideia ou na representação. É aqui que a ilusão pode se converter, ao mesmo tempo, em manipulação e em idolatria.
5. Nietzsche e seu perspectivismo trouxe para gente a ideia de que tanto a realidade, quanto o que chamamos de “verdade”, são criações da linguagem. A linguagem coloca diante de nós um mundo de possibilidades e também de impossibilidades. A palavra pronunciada coloca uma parcela do mundo em movimento, mas nunca é a expressão exata desse mesmo mundo. Isso é o que Jacques Ellul (1984, p. 21) chama de “bendita incerteza do discurso; é o que lhe confere toda a riqueza”. O discurso, completa ele, é sempre ambíguo, jamais transparente. Posso me esforçar para que o outro compreenda exatamente o que estou dizendo, contudo, “não sei, exatamente, o que o outro está entendendo daquilo que digo” (Ibid.). Mas é no meio desses buracos, insucessos e mal-entendidos da linguagem que, segundo Ellul, reside uma nova expansão da vida, em que se recomeça incessantemente, e se deve trabalhar na interpretação do discurso e do texto num movimento sempre em construção e, por isso, sempre susceptível de múltiplas definições. Como expressa Ellul:
A confusão da linguagem impede a posse do ser, seu cativeiro. Eis-me diante de um instrumento de infinita riqueza, inesperada, de uma polifonia desencadeada pela menor frase. A ambiguidade do discurso, e mesmo sua ambivalência, mesmo a oposição entre o momento em que é enunciado e o momento em que é recebido, produzem as mais intensas atividades sem as quais seríamos formigas, abelhas, tornar-nos-íamos ressequidos, esvaziados de nosso drama e da nossa tragédia. Nascem aí o símbolo, a metáfora, a analogia. (Ibid., p. 21).
6. As possibilidades impossíveis da linguagem deveriam, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos – e, por isso, impeditiva do atrofiamento dogmático –, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro: nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias, os conceitos, os símbolos são, assim, formas de redução da realidade e não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de distanciamento involuntário a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão (apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a verdade, mas de preservá-la. Isso é redenção e não desgraça, sobretudo quando se pode assumir jubilosamente a provisoriedade desses “chãos” da linguagem e permitir que eles se desmanchem e se refaçam num movimento dinâmico. Esses chãos estão para a queda assim como o peixe está para a água. O objetivo, porém, é perder o chão sem cair no abismo, e essa é uma arte bastante arriscada que somente os corajosos e aventureiros se dispõem a aprender e se permitem desenvolver. Deixar o chão ruir pode ser, ao invés da “ilusão voluntária” de quem os iguala à realidade, um mergulho consciente e voluntário. Ora, não foi assim com a encarnação do Cristo? Não foi um mergulho (ou enfraquecimento) voluntário na humanidade e na história?
7. Em conclusão, é possível pensar que esse mergulho voluntário tem tanto uma dose de imanência quanto de transcendência (pensando naqueles dois chãos primários da figura), em que recebemos tanto um banho de realidade quanto da fé no incondicional e, a partir daí, fazemos uma revisão de paradigmas, de pressupostos, de nossos chãos. Aqui reside um aspecto muito importante: um chão cai para que outro seja construído – portanto, não se trata de desconstrução pura e simples que redunda num vazio. E isso se dá num movimento dinâmico – como as águas do rio que correm para o mar e de lá voltam a correr (Ec 1.7). Nesse sentido, pode-se pensar que nunca voltamos os mesmos de cada novo mergulho, de cada nova imersão e experiência. A esperança – falando propriamente contra o dogmatismo e a intolerância – é que voltemos mais maduros, melhores, mais tolerantes e generosos. É um movimento descendente, de humilhação, inspirado no evangelho do Cristo que se esvaziou por amor. Oxalá a teologia possa descobrir na arte de perder chãos um antídoto contra o absolutismo, a idolatria e uma ortodoxia morta.
Jonathan
Referências bibliográficas
ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984.
LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2006.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª ed. Revista. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005.
_________. A era protestante. São Bernardo do Campo, SP: Ciências da Religião, 1992.
Muitos pensam que idolatria está vinculado apenas a adoração de imagens feitas por mãos humanas rsrs. Na verdade o mundo evangélico de hj está repleto de ídolos. E esse texto é bem esclarecedor acerca desses novos "modelos" de idolatria..
ResponderExcluirExcelente texto. O chão nos dá segurança e nos preserva da vertigem, da heteronomia. Por mais que investimos em sua desconstrução, lá está ele sempre - de novo. Por mais que precisemos de insigths de ignorância e de "sanidades", fomos lançados-no-mundo (Heidegger). O jogo da vida nos obriga a pisar em chãos. Em resumo, somos todos dogmáticos.
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