sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Verdade como 'evidência muda’: um devaneio

Seeking thruths

Assim como a questão da sexualidade, a questão da verdade ainda é “pedra de toque” da igreja cristã, e eu arrisco dizer: mais das igrejas protestantes que de quaisquer outras. Isso porque quando assumiram, após a Reforma Protestante, que o absoluto não pode ser relativizado e que, por isso, a Palavra de Deus está acima das palavras dos homens, fizeram um duplo movimento a meu ver: (a) entenderam que era preciso defender essa condição absoluta da Palavra de Deus a todo custo, e então recorreram à velha fórmula de determinar quais são os dogmas e doutrinas que melhor servem à conservação da “verdade da Palavra de Deus” – olvidando que a Bíblia é, também, palavra humana; e (b) esqueceram-se de que esses mesmos dogmas e doutrinas são linguagens e não o próprio absoluto; podem ser utilizadas por Deus como instrumento e benção, mas também podem ser anátemas (maldições), sobretudo quando se omitem do fato de que são vasos, meios, e não o próprio fim ou o coração da Verdade.

Esse é o problema do conservadorismo, parafraseando John Caputo: o conservadorismo não conserva, mas mata; pode ser apologético (inicialmente com boas intenções) ao querer defender Deus e seus “fundamentos” (aliás, daí vem a palavra Fundamentalismo), mas é tanto inútil, porque quer defender o indefensável (Deus não precisa de guarda-costas), quanto idólatra, porque transforma os instrumentos de sua defesa (sua teologia, seu discurso) em algo equivalente ao absoluto. Dessa forma, ele não defende Deus, mas mata. Nietzsche estava certo se pensarmos por esse ângulo: se Deus está morto, nós fomos os seus assassinos - e continuamos sendo!

A questão então passa ser: o que fazemos com isso, ou seja, o que fazemos com “a verdade”? Jogamos fora, desistimos, relativizamos? Antes de tudo, se a verdade é mesmo “A Verdade”, então não há sentido para qualquer intento de relativizá-la. Porque “A verdade”, segundo o evangelho, é Cristo – “Eu SOU a verdade”, disse ele em João. E Cristo é Deus, e não um ídolo ou um demônio; Cristo é o verbo (ou a verdade) encarnado, feito gente e, portanto, é também um “ser humano”, e não (pode ser reduzido a) um saber. Há claramente aqui uma diferença entre “ser” e “saber”. Só que não é uma diferenciação simples, é dinâmica e paradoxal. Jesus disse a Pilatos que aqueles que “são” da verdade, o ouvem e sabem do que ele está falando – e, nesse aspecto, “conhecem” a verdade. Aqueles que “são”, “sabem”. Entretanto, pode-se depreender disso também que aqueles que “pensam que sabem” – e pensam que podem expressar isso que sabem numa linguagem pretensamente absoluta – deixam de ser. Então, os que são, sabem; mas o que acham que sabem, não mais são. Há muita gente que é, mas não sabe; e a muita gente que pensa que "é", mas não é, tampouco sabe, só pensa que sabe. Há também muitas espécies de verdade; há muitas maneiras de tentar apreende-las e dominá-las. Mas Jesus, segundo ele mesmo reivindica em João, não é “uma espécie” de verdade, “Ele é a Verdade”: ele, e não nós; ele, e não quem fala em nome dele; ele, e não uma teologia qualquer a seu respeito.

Aqui está a diferença fundamental, que os cristãos custam a compreender: do ponto de vista da fé, a verdade existe e ela tem nome (ainda que o nome em si não a compreenda ao todo): é Jesus. Tudo o que temos, porém, são relances, aproximações, gestos graciosos e amorosos da própria verdade em nossa direção que asseguram, ao nosso ser todo, que estamos nela e dela somos. A verdade, nesse sentido estrito, “dá testemunho de si mesma”, como disse Michel Henry. Posso falar dela – afinal, “a linguagem ainda é seu meio de comunicação por excelência” (emprestando de novo palavras de Henry), desde que for, ou se for, necessário comunicar. Mas a questão é: o que alguém, de fato, comunica quando pretende anunciar a verdade: ela mesma ou uma versão possível, mas sempre diferente, parcial, dela? E essa verdade comunicada nas palavras, pode até convencer, mas de que forma ela liberta (como também diz João): pelo poder das palavras, ou pelo misterioso poder do Cristo, que está além delas? No fim das contas, a verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém. Ser cristão significa viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e capturado pela verdade na vida, e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como “evidência muda” (André Comte-Sponville). Entretanto, que toda fala, todo discurso, toda comunicação, argumentação, raciocínio, narrativa ou teo-logização sejam benditos e bem-vindos, desde que se assumam jubilosamente como meios, e não como fins, como contingentes, e não absolutos. E não um contingente-orgulhoso, pretensioso, paladino, mas um contingente-modesto, despretensioso, assumidamente fraco.

Jonathan

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