quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O pós-moderno, a igreja e a verdade absoluta

postmodern age

Um dos temas prediletos dos tribunais teológicos nos últimos tempos se chama “pós-modernidade”. Para muitos ela inspira ou representa quase sempre algo ruim, um tremendo desafio ao testemunho cristão, a besta do Apocalipse. No livro A Igreja do outro lado (Palavra, 2008), Brian D. McLaren​ critica algumas das críticas cristãs, para ele, distorcidas à pós-modernidade – que são papagaiadas exatamente por quem provavelmente nunca leu um livro sequer de um pós-moderno (que não proponha vale-tudismos), ou leu “alguma coisa” e pensa que, por ela, leu o todo, mais ou menos como quem acha que sabe tudo sobre a Teologia da Libertação tendo lido apenas “o livrinho introdutório dos irmãos Boff”, como vi um teólogo dizer recentemente. Entre as críticas mais requentadas, sobre a qual gostaria de falar nesse texto, está a de que “cristianismo e pós-modernidade são incompatíveis porque os pós-modernos não creem na verdade absoluta”. A resposta de McLaren, com a qual concordo inteiramente, é a seguinte:

Bem, é claro que há uma verdade absoluta lá fora. Não duvido disso. Apenas duvido de sua habilidade, ou na minha própria, de apreender essa verdade e de compreendê-la, lembrá-la, codificá-la numa determinada linguagem e comunicá-la a outros e fazê-la compreendida de uma maneira absolutamente exata. (...) aquilo que as pessoas pós-modernas tendem a rejeitar não é a verdade absoluta, mas o conhecimento absoluto (p. 234).

Ora, isso é quase um truísmo (uma obviedade), poderia dizer alguém, pois quem seria obtuso o bastante para ainda crer e dizer que pode codificar a verdade ou compreendê-la de maneira “absolutamente exata”? Também não entendo que haja um grande número de pessoas que faça isso assim, tão explicitamente. Mas no campo das ciências humanas e no da religião, por exemplo, ainda temos muitos/as "Dom Quixotes" da verdade que resistem em admitir os limites do saber e, mais ainda, da expressão desse saber. Então, prosseguem, usando aqui outra expressão de McLaren, “batendo o tambor da verdade absoluta” por aí, por mais ridículo e desesperado que isso pareça, quem sabe esperando que a chuva caia do céu e esses pós-modernos irresponsáveis finalmente se convençam de que não podemos jogar todos os valores (sobretudo os morais) na lata do lixo. Mas quem disse que o pós-moderno se caracteriza pela completa destruição de todos os valores?

Talvez estejamos lidando aqui com mais um preconceito. Lembrando a famosa definição de François Lyotard, o pós-moderno se caracteriza (num plano geral) pela “desconfiança em relação às meta-narrativas”, isto é, as grandes narrativas, aquelas que se colocam em letras maiúsculas, que pretendem oferecer explicações últimas ou definitivas para uma determinada realidade nos termos de uma determinada forma de pensamento ou linguagem. A teologia, por exemplo, torna-se uma meta-narrativa quando – num ímpeto semelhante ao dos “amigos de Jó” – abandona sua vocação metafórica, e passa a querer explicar e abarcar aquilo que não pode ser contido em vasos, odres ou caixas. Que podemos falar sobre o “radicalmente outro”? Ora, só uma teologia que, por natureza, também só pode ser “radicalmente outra” em relação a Deus, é capaz de dizer algo dentro de suas limitadas possibilidades, reconhecendo que só se pode conhecer em parte, como o próprio Paulo o fez (cf. 1Co 13.12).

E isso não tem nada a ver com “acabar com o absoluto”, porque essa é uma impossibilidade. O absoluto é o que está alheio a tudo: é o Totalmente Outro, o Eterno, o Incondicional. Não há razão para se precaver tanto contra a relativização em questão, pois ela não tem em vista o absoluto em si, uma vez que esse não é passível de ser relativizado, tampouco de ser supra-absolutizado – ficar repetido, em alto e bom som, a Deus que Ele é absoluto (ou todo-poderoso) é tão inútil quanto tentar explicar a um peixe que este sabe nadar. Somente o relativo pode (e deve) ser relativizado, sobretudo quando nutre pretensões ao status de absoluto, ou de ilusões de equivalência. No fim das contas, a supra-absolutização do absoluto ou a tentativa de guarda-lo “a sete chaves” é apenas mais um dos efeitos do desejo por poder que ocupa o interior da religião (e da teologia) há bastante tempo.

Nomear ou conceituar um aspecto do Reino de Deus, por exemplo, e então dizer “isso É o Reino”, é o mesmo que pretensamente conferir (a tal conceito) a mesma natureza (absoluta) do reino. Por isso, a “teologia” de Jesus era metafórica, pois, ao se referir ao reino nas parábolas de Mateus, capítulo 13, por exemplo, ele nunca disse o que o reino é, e sim com o que se assemelha: “O reino de Deus é semelhante a ...” um homem que semeou a boa semente no campo (v. 24); um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou em seu campo (v. 31); um fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha (v. 33); um tesouro escondido no campo (v. 44); um que negocia e procura boas pérolas (v. 45); uma rede, que lançada no mar colhe peixes de toda espécie (v. 47).

Diante das acusações de que gente pós-moderna não se importa com a verdade, McLaren então parte da ideia – talvez um pouco romântica, e quem sabe se referindo a uma parcela dos pós-modernos (são tantos, então penso que sim) – de que “as pessoas pós-modernas se importam tanto com a verdade que não querem fingir que uma opinião subjetiva ou ‘vista de um ponto’ seja mais do que ela realmente é. E se importam tanto com a verdade que questionam a habilidade da linguagem de comunicá-la suficientemente” (p. 235).

Mas isso ainda pode nos colocar diante de um impasse ético, do tipo: bem, se a verdade não nos é acessível, como distingui-la da mentira? Como justificar, do ponto de vista hermenêutico, o sincero escândalo que nos provocam tantos políticos e outras pessoas que mentem? Ou seja, ao se dizer adeus à verdade (como conhecimento absoluto sobre algo), como reconhecer e denunciar a mentira nociva ao bem individual ou comum? Coadunar-se-á com a descarada mentira? Ou, indo adiante, sem o parâmetro da verdade, como é possível se definir e diferenciar coisas tais como “mentira” e “bem comum”, como certo ou errado? Se a verdade absoluta é “mais um perigo que um valor”, como declarou Gianni Vattimo, que valores ainda podem ser nutridos sem que resultem no mesmo perigo ora rechaçado: o de absolutizar aquilo que é apenas particular?

A proposta que Vattimo oferece em seu livro Adios a la Verdad (Gedisa, 2010), parece ser uma solução aberta e provisória ao problema: se é passível que tal conflito não possa ser vencido pela pretensão de se chegar à verdade das coisas, uma vez que o produto sempre será diferente da verdade mesma, resulta que não mais se busque a verdade universal, mas a verdade comunitariamente válida ao grupo numa situação histórica dada. No “adeus à verdade” suspende-se a pretensão a uma validade universal de pressupostos, e se dá boas-vindas a “verdades particulares” com validade relativa e temporária. Assim, não se trata de um total abandono da tarefa de distinguir práticas ou discursos que sejam verdadeiros ou falsos, mas de reconhecer que “a diferença entre verdadeiro e falso é sempre uma diferença que surge de interpretações mais ou menos aceitáveis e compartilhadas”, como produto não do autoritarismo da visão de uns sobre outros, mas de consensos solidariamente possíveis. Não que o papel do diálogo seja, necessariamente, o de produzir consenso, nem que o do intelectual não possa ser o de persuadir seus pares de sua posição. A diferença, para Vattimo, está na palavra interpretação, de modo que: “A filosofia não é expressão da época, é uma interpretação que com certeza se esforça por ser persuasiva, mas que reconhece sua própria contingência, liberdade e riscos” (p. 61).

A filosofia (e/ou a teologia) que emerge, então, dessa abertura para a pluralidade de visões e interpretações diferentes, é carente de princípios últimos ou, por assim dizer, pós-fundacionalista. Mas, se ela é débil de fundamentos e de uma origem, como pode falar racionalmente e/ou não descambar para um irracionalismo puro e simples do tipo vale-tudo? Na perspectiva desse autor, ela o faz a partir de “eleições responsáveis” ou pontos de partida explícitos (não neutros, nem universalizantes), que surgem de necessidades plantadas não pelo olho de Deus subjacente a toda moral, mas pelo contexto e suas situações específicas. Vattimo parece propor, assim, a troca de uma ética universal (com imperativos categóricos) por uma ética situacional (com imperativos contextuais, forjados a partir de uma pertença comunitária e, assim, relativos a um lugar). A isto ele chama de ética da finitude: “aquela que tenta se manter fiel ao descobrimento da situação, sempre insuperavelmente finita, da própria procedência, sem esquecer-se das implicações pluralistas de tal descobrimento” (p. 110).

Isso se estende também ao que chamamos de “verdades” ou da “ética” do cristianismo. O cristão pode se manter fiel aos princípios nos quais acredita sem ter a pretensão de que eles sejam adotados irrestritamente por todas as pessoas, especialmente no âmbito público e civil. A ideia de que “precisamos implantar os valores cristãos na sociedade” tende a perder sua preeminência, não para que o relativismo – como parece ser o temor de tantos – tome seu lugar e se instaure o regime da desordem (uma espécie de anarquismo ético), e sim para que esses “consensos solidários”, sobre os quais Vattimo fala, sejam possíveis (ou pelo menos pensáveis por um grupo mais significativo de pessoas), levando em conta os direitos humanos básicos – que os cristãos deveriam ser os primeiros a abraçar, se é que são tão “éticos” quanto pensam e se é que sua ética transpassa o âmbito dos “princípios morais individuais” (do “eu” não faço isso ou aquilo) – e não o que “a igreja”, ou “um governo cristão”, ou uma “bancada evangélica” quer determinar como regra para todo mundo.

Se os cristãos não colocam como uma voz no coro de múltiplas vozes que se fazem ouvir na sociedade, talvez seja melhor que se calem; se não se podem contentar no papel de cooperadores (e não paladinos ou detentores) com o evangelho, talvez seja melhor não atrapalhar o processo; caso prossigam sendo teimosos em não se abrir para o diálogo (mais por medo que por convicção), provavelmente prosseguirão falando apenas de si para si mesmos numa congratulação universal dos que se colocam como os fiéis defensores da verdade. Os “demais cristãos”, marginais por natureza, que não pensam assim, devem ser exilados sob a pecha de “liberais”, “hereges” ou “apostatas”, quando não “anticristos”, porque tanto sua forma de pensar quanto de ser não estão de acordo com o que “a Bíblia diz”. “Compare com o que a Bíblia diz”, afirmam alguns desses fiéis (mais retos que a lei), “e verás que estás fora da verdade!”. Para esses, a equação é muito simples: “a Bíblia diz” é igual a “Deus diz”. Se eu repito, fielmente (ou seja, de modo literal), o que a escritura está dizendo, então a minha palavra corresponde à Palavra de Deus. Logo, se alguém contradiz a minha palavra, contradiz a Palavra de Deus e, portanto, é um herege. Isso é um exemplo tosco de como se pode perder de vista a lição de Jesus nas parábolas do Reino: só podemos comparar linguagem com linguagem e não linguagem com “o fato”, “a realidade”, “o ser”, “a essência”, “a verdade”, e assim por diante.

O que preocupa aos cristãos em geral é uma coisa chamada “critério de decisão”. Qual é o critério que devemos adotar para decidir sobre questões de cunho moral (já que entramos no assunto)? Richard Rorty, em Contingência, ironia e solidariedade (Martins Fontes, 2007), tem muito a ensinar aos cristãos nesse sentido. O problema, para ele, não é a busca por critérios em si, mas a busca deles no mundo (ou em Deus) na expectativa de que ele “fale”, ou melhor, dite o que é ou tem de ser. Essa tentação de buscar critérios no mundo é devida a tendência de pensar no mundo, ou no próprio ser humano, como possuidor de uma “natureza intrínseca”, uma “essência”. Como não alcançamos essa essência (apenas pretendemos), o resultado é a “tentação de privilegiar uma dentre as muitas linguagens com que habitualmente descrevemos o mundo ou nós mesmos”, e a consequente criação de “vocabulários-como-totalidades” (p. 31), ou, diria eu, de vocabulários-deuses.

Evitar essa tentação é minha proposta aqui, destinada particularmente aos próximos da fé, e é também a proposta de pós-modernos como Rorty e Vattimo. Para isso é necessário um sacrifício: não o sacrifício da verdade, mas o sacrifício pela verdade – se é que ainda nos importamos com ela, e não apenas estamos interessados no poder ou status que a pretensão de possuí-la, ou que sua posse efetiva como efeito do “abuso espiritual” ou religioso, nos confere. O sacrifício “da verdade” acontece sempre que alguém alega tê-la encontrado, em seu estado absoluto, e a codificado em uma linguagem; já o sacrifício “pela verdade” é um sacrifício de si mesmo e da visão de que minha linguagem e teologia correspondem ao modo como as coisas (Deus, sua Palavra) realmente são. O sacrifício pela verdade é uma imitação do sacrifício de Jesus – o caminho, a verdade e a vida –, que como Ser-Verdade se sacrificou por amor, ao contrário de muitos dos que dizem seus seguidores, que continuam, em nome de uma versão tremendamente distorcida dele, sacrificando o amor ao próximo em nome da apologia da verdade: que mata, trucida e exclui.

Por fim, como destaca Rorty, “dizer que devemos abandonar a ideia da verdade como algo que está aí, à espera de ser descoberto, não é dizer que descobrimos que não existe verdade alguma” (p. 33). Igualmente, dizer que não podemos mais aceitar critérios absolutos, porque supostamente atribuídos pela “natureza intrínseca” de algo, não é dizer que a partir de agora vivemos a partir de critério algum ou do “critério de me der na telha”. Apenas admitimos que são nossos critérios, que podem e devem ser colocados no mesmo patamar e em diálogo com outros critérios, em busca não de que um se estabeleça ou prevaleça sobre outro, mas de que encontremos aqueles “consensos solidários possíveis”, para construção de uma sociedade democrática e de direitos, na qual os marginalizados pelo sistema também tenham voz, e não de uma sociedade regida por parâmetros da minha religião.

“Mas eles precisam saber que Cristo é a Verdade!”, pode bradar alguém. Concordo, mas pergunto: como é que alguém “sabe” que Cristo é “a verdade”? Será por meio do convencimento proveniente de uma lógica teológica ou apologética qualquer? Será por ter sido testemunha ocular do poder de Deus? Vamos supor que um descrente X chegue a ser convencido, pelos crentes A e B, de que “Cristo é a Verdade”. Convenceram-no de que a verdade do cristianismo é plausível, e de que é absoluta, ou seja, de que está acima e, portanto, torna mentirosa qualquer outra forma de saber, religioso ou não, que reivindique ser verdade. Seria possível inferir pela situação descrita que: já que X foi convencido por A e B de que Cristo é a verdade, logo X é cristão? Mais do que isso: imaginemos que X tenha também presenciado um milagre, como a cura de um paralítico, que A e B obviamente atribuíram a Deus. Isso deve, necessariamente, levar-nos a crer que X agora se tornou uma pessoa de fé? Pode ser que sim, pode ser que não; mas não há garantias cósmicas, nem provas cabais de que seja (ou tenha de ser) assim.

Afinal de contas, a vida humana, seus encontros e desencontros com Deus e consigo mesma, tem uma dimensão de mistério, de inexplicável; Deus, por sua vez, tem seus próprios meios de se fazer conhecido, com ou sem nossa “santa ajuda”, e não é absolutizando nossos meios (nossa linguagem) que garantiremos que alguém venha a conhecer ou aceitar Deus. Estou convencido de que meu papel, ou melhor, meu modo de ser é ser testemunha, por palavras e ações (e, no contexto em que estou inserido, mais por ações que palavras) do Cristo que, pela graça, me fez e me faz ser quem sou, ou seja, do Deus que “É”, apesar de eu não ser, e que, parafraseando Tillich, me dá a “coragem de ser” apesar de não ser. O “convencimento” é papel de Deus; a salvação também. Nesse sentido, finalizo com as palavras de Michel Quoist em Construir o homem e o mundo (Duas Cidades, 1878):

Qualquer pessoa pode mudar de opinião, e algumas vezes bastante rapidamente. Mas, raramente acontece que alguém mude de opinião pelos argumentos de um outro que decidiu convencê-lo. Assim, se, por uma verdadeira preocupação de difundir a verdade você resolveu fazer alguém evoluir, não diga: vou demonstrar-lhe que está errado, mas, vou ajudá-lo a descobrir a verdade por si mesmo. Muitas vezes o outro estaria pronto para aceitar “a” verdade e não a “sua” verdade. Por que você monopoliza a verdade? Ela existe independentemente de você. Em noventa por cento dos casos, quando você a açambarca, você a turva. Se você quiser ser bem sucedido em suas discussões, esqueça-se e respeite o outro. Não seja o rico que dá uma esmola ao pobre, mas o amigo que corre em direção ao amigo para se unir a ele, e com ele descobrir a verdade. Trata-se de uma verdade religiosa? Então nunca se esqueça que o cristianismo não se demonstra por meio de raciocínios ou de ideias [sic.], pois antes de ser uma doutrina, o cristianismo é uma pessoa. A verdade é Cristo. E não se discute Cristo, acolhe-se Cristo. “Discutir religião” é, antes de tudo, dar testemunho e ajudar o outro a encontrar Cristo (p. 163).

Jonathan

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Verdade como 'evidência muda’: um devaneio

Seeking thruths

Assim como a questão da sexualidade, a questão da verdade ainda é “pedra de toque” da igreja cristã, e eu arrisco dizer: mais das igrejas protestantes que de quaisquer outras. Isso porque quando assumiram, após a Reforma Protestante, que o absoluto não pode ser relativizado e que, por isso, a Palavra de Deus está acima das palavras dos homens, fizeram um duplo movimento a meu ver: (a) entenderam que era preciso defender essa condição absoluta da Palavra de Deus a todo custo, e então recorreram à velha fórmula de determinar quais são os dogmas e doutrinas que melhor servem à conservação da “verdade da Palavra de Deus” – olvidando que a Bíblia é, também, palavra humana; e (b) esqueceram-se de que esses mesmos dogmas e doutrinas são linguagens e não o próprio absoluto; podem ser utilizadas por Deus como instrumento e benção, mas também podem ser anátemas (maldições), sobretudo quando se omitem do fato de que são vasos, meios, e não o próprio fim ou o coração da Verdade.

Esse é o problema do conservadorismo, parafraseando John Caputo: o conservadorismo não conserva, mas mata; pode ser apologético (inicialmente com boas intenções) ao querer defender Deus e seus “fundamentos” (aliás, daí vem a palavra Fundamentalismo), mas é tanto inútil, porque quer defender o indefensável (Deus não precisa de guarda-costas), quanto idólatra, porque transforma os instrumentos de sua defesa (sua teologia, seu discurso) em algo equivalente ao absoluto. Dessa forma, ele não defende Deus, mas mata. Nietzsche estava certo se pensarmos por esse ângulo: se Deus está morto, nós fomos os seus assassinos - e continuamos sendo!

A questão então passa ser: o que fazemos com isso, ou seja, o que fazemos com “a verdade”? Jogamos fora, desistimos, relativizamos? Antes de tudo, se a verdade é mesmo “A Verdade”, então não há sentido para qualquer intento de relativizá-la. Porque “A verdade”, segundo o evangelho, é Cristo – “Eu SOU a verdade”, disse ele em João. E Cristo é Deus, e não um ídolo ou um demônio; Cristo é o verbo (ou a verdade) encarnado, feito gente e, portanto, é também um “ser humano”, e não (pode ser reduzido a) um saber. Há claramente aqui uma diferença entre “ser” e “saber”. Só que não é uma diferenciação simples, é dinâmica e paradoxal. Jesus disse a Pilatos que aqueles que “são” da verdade, o ouvem e sabem do que ele está falando – e, nesse aspecto, “conhecem” a verdade. Aqueles que “são”, “sabem”. Entretanto, pode-se depreender disso também que aqueles que “pensam que sabem” – e pensam que podem expressar isso que sabem numa linguagem pretensamente absoluta – deixam de ser. Então, os que são, sabem; mas o que acham que sabem, não mais são. Há muita gente que é, mas não sabe; e a muita gente que pensa que "é", mas não é, tampouco sabe, só pensa que sabe. Há também muitas espécies de verdade; há muitas maneiras de tentar apreende-las e dominá-las. Mas Jesus, segundo ele mesmo reivindica em João, não é “uma espécie” de verdade, “Ele é a Verdade”: ele, e não nós; ele, e não quem fala em nome dele; ele, e não uma teologia qualquer a seu respeito.

Aqui está a diferença fundamental, que os cristãos custam a compreender: do ponto de vista da fé, a verdade existe e ela tem nome (ainda que o nome em si não a compreenda ao todo): é Jesus. Tudo o que temos, porém, são relances, aproximações, gestos graciosos e amorosos da própria verdade em nossa direção que asseguram, ao nosso ser todo, que estamos nela e dela somos. A verdade, nesse sentido estrito, “dá testemunho de si mesma”, como disse Michel Henry. Posso falar dela – afinal, “a linguagem ainda é seu meio de comunicação por excelência” (emprestando de novo palavras de Henry), desde que for, ou se for, necessário comunicar. Mas a questão é: o que alguém, de fato, comunica quando pretende anunciar a verdade: ela mesma ou uma versão possível, mas sempre diferente, parcial, dela? E essa verdade comunicada nas palavras, pode até convencer, mas de que forma ela liberta (como também diz João): pelo poder das palavras, ou pelo misterioso poder do Cristo, que está além delas? No fim das contas, a verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém. Ser cristão significa viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e capturado pela verdade na vida, e a boa-nova libertadora de não poder apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como “evidência muda” (André Comte-Sponville). Entretanto, que toda fala, todo discurso, toda comunicação, argumentação, raciocínio, narrativa ou teo-logização sejam benditos e bem-vindos, desde que se assumam jubilosamente como meios, e não como fins, como contingentes, e não absolutos. E não um contingente-orgulhoso, pretensioso, paladino, mas um contingente-modesto, despretensioso, assumidamente fraco.

Jonathan