Com que é mais complexo lidar: com as próprias sombras (lado sombrio) ou com as de outro? De ímpeto eu diria que as duas. É difícil lidar com o ser humano em si. É difícil lidar com pessoas "difíceis", isto é, que dominam a arte de complicar ainda mais a vida - e que ainda acham que podem (pior, têm o "dever") de dizer como os outros têm que ser/viver. É mais difícil ainda quando nas sombras do outro, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas. Por isso, pensando bem, é mais difícil lidar com as próprias sombras. Sobretudo porque delas eu não tenho como me livrar; sublimar talvez, mas não arrancar, apagar, não ver.
Sombras: tais como o ódio contido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e assim por diante. A lista pode ser grande. Cada um sabe mais ou menos onde o calo aperta - e como aperta! Nessas horas me dou conta que encarar o outro é o de menos. O golpe mais duro, o mais avassalador, é ter que encarar a si. Aqueles/as que, mesmo relutando, o fazem, porque sabem que, já que não tem pra onde correr, o melhor é não correr, estão a beira de cometer a maior transgressão de todas: a transgressão de si. Automaticamente assumem a "coragem de ser" (Tillich), abraçam o "sentimento trágico da vida" (Unamuno), começam a trilhar o caminho da "aceitação jubilosa de si" (Rosset), sem, porém, ter de se resignar ao adágio do "sou assim e pronto".
Ninguém é irresistivelmente uma coisa, de modo a se tornar cativo dela, a menos que ele/a mesmo/a assim o queira. Aceitação jubilosa não é aceitação passiva, é aceitação corajosa e consciente, ponto essencial para toda mudança possível. "Possível", eu digo, e não forçosa, obrigatória, porque ninguém é obrigado a mudar, e porque nem sempre a mudança que se quer é atingível, exequível, plausível. Então, fico com a "possível" mesmo. E não venha me falar do "impossível", que é da ordem do sobrenatural, e não do humano; do extraordinário, e não do ordinário. De tanto pensar no extraordinário, nos esquecemos do ordinário - por isso neste breve devaneio o que me interessa é o segundo, não o primeiro, goste você, ortodoxo/a de plantão, ou não. Até porque como se diz na frase atribuída a Aby Warburg, "Deus está no particular", nos detalhes, no singular, nas coisas ordinárias do dia a dia. Se não aprendo a vê-lo ali, a celebrá-lo ali, a encontrá-lo na próxima esquina, como bem disse Elienai Cabral Junior em seu Salvos da perfeição, de que vale encontrá-lo no templo? Ele me acompanha também nas sombras, e diferentemente de muitos dos que se dizem "meus amigos", não tem ojeriza delas, mas lança luz no meio das trevas.
O que fazer com as sombras? Como não se perder no meio delas? Existe um modo de dissipá-las? Não sei. Só sei que tenho que com-viver. Desisti de encontrar respostas e saídas pra tudo, e isso já faz um tempo; não tenho que fingir ser algo que não sou; não preciso encontrar "o lado positivo" em tudo, e por isso me vejo fazendo um exercício tremendamente impopular: estou aqui para falar das sombras, e não de seu suposto "remédio". Quem disse que pra tudo há remédio? E o que fazer com o que não se pode remediar? Que fazer com o trágico, o fortuito, o trauma e o inesperado da vida? Desculpem-me, hoje não tenho palavras de consolo para lançar em meio às sombras; entendo que a luz melhor reluz quando corajosamente resolvo ter com elas, e não quando, num ato desesperado e artificial, tento a todo custo sair. Há esperança? Sim, se estamos dispostos, como o patriarca Abraão o fez, a "esperar contra a esperança", a semeá-la em terra seca, e a não desistir da luta jamais, mesmo desejando muito desistir, jogar a toalha, chutar o balde. Pois quem desistiu, não tem mais histórias pra contar, nem das sombras ou da luz pode falar. E, sinceramente, prefiro as sombras do que o nada.
Jonathan
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