Nosso mundo é um mundo cada vez mais competitivo, composto de pessoas competitivas. Nem todos são vencedores, nem todos os vencedores alcançam o pódio e o poder por mérito próprio, mas quase todos, regidos pela lei do mercado, competem entre si para ver quem conquista o direito de “chegar lá”. Maquiavel ficaria feliz em se dar conta de que sua teoria, originalmente aplicada à política de sua época (no clássico O Príncipe), funciona bem em outros ambientes, como o mercado de trabalho ou a religião, por exemplo; universos nos quais nem sempre importam tanto os meios, se estes estiverem a serviço de almejáveis fins. Sucesso, pujança e relevância são palavras indispensáveis a qualquer um que deseje ter uma sobrevida neste tipo de sociedade.
Você, leitor/a, deve estar se perguntando, “e a igreja nisso?”, já que meu título remete a ela. Bem, a igreja vive na tensão entre ser uma expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada em Jesus. Ou seja, o que move a igreja não são os ditames do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu Senhor.
E o exemplo de Jesus, suas prioridades, sua missão se desenham desde seus primeiros passos no ministério. Segundo a narrativa de Lucas no texto indicado acima, Jesus não inicia seu ministério em ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no deserto. Lucas diz que ele voltou do Jordão (lugar de seu batismo) “cheio do Espírito” e que ele “foi guiado pelo mesmo Espírito no deserto” (Lc 4.1). Depois de quarenta dias, ele passou a ser tentado pelo diabo no instante mesmo de sua maior vulnerabilidade e em seus aspectos geradores: (a) suas necessidades básicas (transforma pedras em pão), (b) sua identidade (se és o filho de Deus, atira-te daqui e convoque os anjos pra te livrarem), (c) sua vinculação divino-humana com o poder (a ti darei todos estes reinos se prostrado me adorares). Em nenhuma delas, porém, Jesus foi imprudente, não se submetendo ao uso leviano da Palavra pelo diabo. Pelo contrário, ele rejeita o caminho do poder e abraça, a partir dali, uma vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa apenas de fazer a vontade do Pai.
O caráter dessa vocação se confirma no momento seguinte da narrativa. Num sábado, Jesus adentra a sinagoga (respeitando o costume e a tradição) e lhe é dado o livro do profeta Isaías, no qual se lê: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos, e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4.18-19, NVI). E, logo em seguida, disse aos presentes que aquela palavra acabara de se cumprir nele mesmo. Desde então, fica claro que ele encarna a figura indigesta do profeta.
Quase todo líder cristão em nossos dias, naturalmente, imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fim de conquistar seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total: todos na sinagoga ficaram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, caminho de cruz.
O que a igreja contemporânea tem a aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui poderíamos extrair, eu diria que igreja e seus líderes precisam aprender com Jesus a não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do mercado) no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para ser um frágil instrumento da missão do reino neste mundo. Henri Nouwen vai além, e afirma algo arrojado em relação aos líderes cristãos (que aqui reaplico a igreja): “O líder cristão do futuro será aquele que ousa afirmar sua irrelevância no mundo contemporâneo como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso. E leve a luz de Jesus para brilhar ali”.
“Frágil e irrelevante”, digo, não porque encarna o espírito de vítima ou de derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício legítimo de poder na igreja passa pela fragilização de quem o exerce, no momento em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço, como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma: olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a igreja de Cristo precisa fazer ao lidar com poder e instituições neste mundo, qual seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando-os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir.
A igreja que se diz de Jesus não pode inverter a lógica: ela ama mais as pessoas que as instituições e não o contrário. Aliás, instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor e/ou veneração!
Ademais, a vocação primária da igreja faz com que ela não esteja neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela, porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual) –, mas para peregrinar na liberdade, e seguindo os rastros, do Espírito e obedecendo unicamente a um Senhor. Por fim, o papel da comunidade do povo de Deus em um tempo tão plural como o nosso não reside em normatizar o falar de Deus, nem tampouco na pretensão de falar por Deus, como se a ela tivessem sido conferidas tanto uma revelação especial quanto um modo especial (ou exclusivo) de apresentar a revelação. Em tempos de fragilização, como o pensamento fraco de Gianni Vattimo nos faz atentar, a igreja não passa de um débil e, como tal, não exclusivo instrumento da Missio Dei, que, para ser efetiva como instrumento, precisa se aceitar como insuficiente, frágil, como um vaso de barro nas mãos do Oleiro, a fim de que nela, através dela e para além dela, isto é, no mundo, avulte o poder do Espírito Santo, a única testemunha absoluta da verdade, a nós não acessível senão por meio de fragmentos de linguagem e fragmentos de experiência.
Jonathan
Estou alegre por encontrar blogs como o seu, estive a ver e ler algumas coisas,
ResponderExcluirreparei que aqui há uma pessoa artista,e como aprecio pessoas com arte
fiquei mais um pouco para ver melhor.
Posso dizer que gostei do que li e vi desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.
Muito bom Jon!
ResponderExcluirGostaria que outras pessoas pensassem assim também.
Especialmente em meu contexto.
Gostei muito da reflexão sobre Jesus no deserto - que lugar mais esdrúxulo(numa ótica de mercado).
Muitas vezes estamos tão comprometidos com estratégias de mercado, com o nosso próprio bem estar, com a técnica certa, com o empreendimento maior de esforço para alcançar nossos alvos, que esquecemos de ter Cristo como referencial, de ouvir o Espírito Santo como guia.
Pensarmos que podemos e temos que falhar segundo a ótica de mercado, para focar e agir como Cristo, é uma grande escolha de fé, que vai demandar esforço, mas de vai ser de fato relevante.
É interessante a questão da escolha: significa abrir mão de muitas opções para escolher outra: o modo de pensar do mercado é uma que devemos abrir mão.