Todos os seres humanos nascem com uma vocação em comum: a vocação para a liberdade. Alguns entendem (ou simplesmente vivem, sem entender) que é possível realizar esta vocação em cativeiros. Outros, porém, muito cedo acordam para uma realidade mais ampla, complexa e difícil, de que esta vocação só pode ser concretizada à medida que o ser que a vive se indispõe contra os muitos condicionamentos a que está sujeito, se colocando como antítese de toda forma de cativeiro. Rubem Alves é um desses homens que, em nome de uma visão de liberdade, se rebelou contra os sistemas de clausura, seja do pensamento, da ação, da escolha e da vida humanas.
Mas, para entender quem é Rubem Alves, talvez seja melhor começar por quem ele foi, mas não considera mais ser.
Rubem Alves foi um militante protestante contra o que chamou de “protestantismo de reta doutrina” em busca do “princípio protestante”, que aponta para um protestantismo que um dia protestou, mas que se viu perdido em suas expressões teológicas, confessionais e eclesiásticas. Queria de volta um protestantismo do canto, pois dizia que “as pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entendê-la”. Afirmava ter se tornado protestante por seu gosto pela diferença. Deixou de ser protestante quando nele não enxergava mais nem o canto, que “dá asas aos pés”, nem o gosto pela diferença. Foi também pastor presbiteriano, e teólogo. Inspirou-se no exemplo de Albert Schweitzer, que conseguia simultaneamente ser teólogo, organista, médico, e ainda ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Em tempos de ditadura, foi denunciado e perseguido pela própria Igreja Presbiteriana do Brasil em que servia, por causa de suas ideias consideradas liberais e subversivas demais. Teve que sair pela porta dos fundos, lotado entre os “hereges”. Para além da teologia, navegou pelos mares da filosofia, da literatura, da educação e da psiquiatria, cruzando com proficiência as fronteiras do saber, da escrita e do ensino. Por isso é respeitado muito mais fora do que dentro do apequenado universo teológico brasileiro.
Atualmente, Rubem Alves se considera um “teólogo livre e com alegria”, educador não-ortodoxo, amante de poesia e literatura. Os golpes duros que recebeu o conduziram a estes campos; respondeu aos inquisidores e seus tribunais com poesia e bom-humor. Há muito não se considera mais teólogo, nem religioso. Já havia dado indícios desse caminho nos idos de 1960-70, quando publicou ensaios como “O vento sopra onde quer... confissões de um protestante obstinado”, onde dizia: “Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio divino e sucumbe à tentação e à crueldade da espada – eclesial ou secular, não importa”. Um de seus últimos suspiros na esfera acadêmica da teologia se deu através de sua tese de doutorado em Princeton: “Towards a Theology of Liberation Corpus”, publicada primeiramente em inglês com o título “Theology of Human Hope” (1969), e depois em português já com título semelhante ao da obra em análise: “Por uma teologia da libertação” (relançada pela Fonte Editorial em 2012). Na ocasião desta obra, Alves já não era pastor, abraçava com avidez tanto o humanismo como o liberalismo, e dava início a uma linguagem que se popularizou, pela via do realismo, mais em seio católico (embora seja muito consumida por leitores-pesquisadores protestantes): a teologia da libertação.
Ao ler este livro (em seus seis capítulos), é possível, especialmente para um assíduo freqüentador das obras de teólogos da libertação, notar que a filiação de Alves com esta teologia, que amadureceu e cresceu especialmente entre teólogos católicos, é fundamentalmente nomenclatural. Esta pode ser uma tese básica sobre este livro. O propósito que o livro advoga, por sua vez, é o da entrada definitiva da teologia no campo do humano e do político, deixando para trás a linguagem da metafísica e as metanarrativas, buscando adotar uma nova linguagem, que deve ser expressão de sua condição histórica e relativa.
A título de apreciação crítica mais pontual sobre esta obra, gostaria de falar apenas sobre uma importante contribuição e uma evidente lacuna que nela observo.
Primeiro, ela contribui, especialmente para os estudiosos do tema da teologia da libertação e da temática da liberdade, a perceber as interpolações que se pode observar entre a linguagem (os termos, conceitos, ideias) utilizada por Alves e aquela que foi apropriada, recriada ou re-significada por teólogos da libertação na América Latina como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Juan Luís Segundo e outros em suas abordagens. A concepção de um sujeito da história, artífice de seu próprio destino, que emerge a partir de uma nova consciência e com uma nova linguagem, de libertação, me parece ser a mais significativa. A concepção de que, no caminho rumo à liberdade, existe sempre a possibilidade e o risco de se perder, mas nem por isso devemos abandoná-lo, uma vez que é da natureza da liberdade o arriscar, é outra ideia importante que este livro aponta, como subsídio a uma compreensão teológica da liberdade.
Segundo, ainda falando sobre esse sujeito da história, postulado por Alves, é evidente a lacuna que este autor não preenche – e que os teólogos da libertação o fazem com mais propriedade – que é a de conferir um rosto a este sujeito. Qual é a sua cor, nacionalidade, classe, contexto, particularidade, causa ou necessidade concreta? Simplesmente não há resposta para nada disso. Assim, embora Rubem Alves, ou seu livro (como uma espécie de canto do cisne), possa ser considerado um referencial teórico ou inspirador da linguagem da libertação, lhe falta o que é fundamental nas teologias da libertação posteriores a ele mesmo: o elemento contextual e da eficácia, sobre a qual ele fala apenas de passagem. A crítica, portanto, é que, no fim das contas, o que Alves parece defender é, paradoxalmente, uma concretude abstrata, um sujeito sem rosto e uma libertação sem causas históricas, fruto talvez de sua veia mais poética que propriamente realista ou comprometida visceralmente com causas históricas.
Por fim, e a despeito da crítica acima, vale dizer que a leitura desta obra é indispensável ao público acadêmico de teologia especialmente; também aos estudiosos interessados nas raízes histórico-teológicas do movimento da teologia da libertação, e aos estudantes pesquisadores, curiosos ou apaixonados pelo tema da liberdade e as inúmeras facetas que ele pode assumir em uma análise de cunho teológico.
[Imagem: Extraída do site da Assembléia de Deus Betesda].
[Imagem: Extraída do site da Assembléia de Deus Betesda].
Jonathan
Engraçado, Jonatas, é que a crítica que Alves faz a Barth e a Moltmann nesse texto, se dá numa direção parecida a esta crítica que você faz a ele. Alves os acusa de não terem dado ao sujeito histórico o devido protagonismo que lhe caberia. Mas concordo com você: Alves fala mesmo de um protagonista sem rosto. Eu acrescentaria que as novas "teologias do sujeito" também criticam as matrizes da TdL por não terem definido melhor o rosto do "oprimido". Criticam-na por terem negligenciado que esse pobre tinha sexo, etnia, gênero, etc., e que as relações de poder que os submetiam tomavam esses caminhos, além da opressão econômica. Grande abraço com admiração !!!
ResponderExcluirExatamente, Paulo. Me parece que Alves realmente não se deu conta de que estava caindo na armadilha que ele mesmo armou para seus principais interlocutores nesta obra. De qualquer forma, gostei muito de ler o livro, especialmente porque ele abre um leque interessante para entender a caminhada teológica posterior da TdL.
ResponderExcluirObrigado por seu comentário.
Jonathan