Tenho me focado até aqui em travar uma discussão teórica, em primeiro plano, sobre a questão da verdade em uma perspectiva (cristã) pós-moderna, sem me preocupar muito com as implicações disso no que diz respeito às posturas ético-relacionais do cristão chamado a dar “testemunho da verdade”, conforme o exemplo de seu mestre. Parte dessas implicações, creio, tentei abordar em meu outro artigo, “Verdade e liberdade em um reino de vida”. Aqui seguirei um caminho parecido, mas diferente, Não a partir da ótica de “como” se evangeliza, mas “em que base”. E penso (não somente eu, é claro) que esta base – a despeito de quem, como ou onde – é relacional, a partir do paradigma da presença.
No anseio por defender nossas convicções cristãs em meio a um mundo onde elas são cada vez menos consideradas como relevantes para a vida em geral, tendemos a nos focar muito em questões – a questão do aborto, a questão da corrupção, a questão do homossexualismo, a questão da verdade – e com isso perdemos de vista os relacionamentos com as pessoas em torno das quais se levantam tais questões. Em outras palavras, as questões tendem a ser mais importantes que as pessoas. E que implicações isto tem? Penso que elas são mais ou menos óbvias. No que diz respeito à verdade, por exemplo, reitero: se a verdade passa a ser tratada mais como questão e objeto de defesa – a “minha verdade” contra a “verdade dos outros” – a tendência é que se perca de vista o princípio (no caso cristão, relacional, de amor) que serve como combustível para que essa verdade possa ser reconhecida como verdade-vida e não verdade-morte. A defesa da questão da tolerância pode, da mesma forma, se tornar mais importante que o ser tolerante, inclusive com quem não é. Aliás, é uma contradição em termos, o defender a tolerância e não tolerar que não tolera. E o mesmo poderia ser dito da justiça, ética, solidariedade, compaixão, e assim por diante.
Quando a defesa da retidão e do “caminho certo” torna-se mais importante que a conexão com as pessoas, podemos estar diante de um cabal exemplo de como estar no caminho torto e equivocado, mais perto do farisaísmo que de Jesus.
Penso que dar testemunho da verdade em um mundo pós-moderno é partir mais do paradigma da presença que do discurso. Ainda que não prescindamos totalmente dos discursos e admitamos que eles ainda possam ser válidos, entendo que a presença e o modo como nos fazemos presentes “entre os outros” no mundo é o que (ainda) pode fazer diferença, e até dar mais crédito ao que falamos. A vida, nesse sentido, não apenas fala mais que a própria fala, mas a legitima. Nossa presença não é equivalente a presença de Cristo – uma vez que ele já se faz presente, com ou sem a gente – mas é um reflexo possível de sua presença: solidária, amorosa, não-excludente, dialogal, transformadora. Não necessariamente através de grandes gestos, mas de pequenos gestos feitos no dia a dia, quando ninguém está vendo, quando não há jornal que noticie e nem público que aplauda. Pequenos gestos são, assim, “sinais de esperança”, como disse Hans de Wit, que ainda defende a idéia de que “assim como o mal começa muitas vezes com coisas pequenas – a criação da imagem do inimigo, a pressão social, a proibição da dúvida – também o bem muitas vezes se realiza por meio de pequenos gestos de amor” (De Wit, 2011, p. 302 – grifo meu).
Dessa forma, ao invés da insígnia de “embaixadores do evangelho”, prefiro a insígnia paulina de que somos “colaboradores com o evangelho”. O colaborador co-labora e não labora em lugar de. Nosso trabalho é inútil e pretensioso quando achamos que o Espírito está do nosso lado, e não que nós é que, pela graça, no colocamos ao lado dele, seguindo suas pegadas no mundo, “ouvindo duas vezes”, usando a brilhante imagem de John Stott em “Ouça o Espírito, ouça o mundo” (2003).
Outra imagem interessante de Paulo que gostaria de evocar é a de um “tesouro em vasos de barro” (2Co 4.7). Ela designa o contraste entre nossa humanidade, que como o vaso vem do pó, é frágil, vulnerável e sujeita a quebra, com o eterno poder do evangelho e a divina companhia, que não podem ser contidos, mas que escolhem precisamente o que há de mais fraco e incerto para se “abrigar”. A pergunta é: por quê? Paulo dá a resposta no mesmo verso: “Para mostrar que este poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós”. Curioso, não? Temos um “poder”, mas que não é precisamente “nosso”, nem nos faz maiores que ninguém, antes ressalta nossa fragilidade e não imunidade às contingências e sofrimentos de qualquer ser humano. Mesmo possuindo, ou melhor, sendo possuídos pelo tesouro, nós nunca deixaremos de ser simples “vasos”...
O vaso não existe para ser transformado em cofre-forte e blindado, mas existe para morrer: “Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal. De modo que em nós atua a morte; mas em vocês, a vida” (2Co 4.10). O vaso não existe para “proteger” a integridade do tesouro (ela não pode ser ferida), mas é o tesouro que é oferecido para restaurar a integridade do vaso. Não somos, portanto, caçadores (fomos achado por ele e nele) nem detentores do tesouro (somos detido-libertos nele); este tesouro não precisa de sentinelas, cofres de segurança ou guardiões, mas de simples vasos que não querem resplandecer, mas que anseiam para que, pela graça, o tesouro neles resplandeça.
Paulo, portanto, nos convida a rever nossa teologia do poder e da fraqueza, e a reservar um lugar em nossa vida e missão como igreja ao acolhimento e aceitação da fraqueza, em louvor à fragilidade. Somente quando assumirmos este lugar de vulnerabilidade em nossa relação com o mundo e nos variados contextos em que o Senhor no coloca, o poder de Deus poderá se aperfeiçoar em nós para alcançar as pessoas (tantas vezes perdidas) no caminho, com verdade e com vida.
Jonathan