quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Arruinado, ferido e ainda assim, íntegro (II)

2. No hospital entre o Pronto Socorro e a UTI

Um dos lugares em que mais escancaramos nossa inadequação e escândalo diante da dor humana é o hospital. Pense em uma UTI e em um Pronto-Socorro. Que é difícil se ver confortável estando em um hospital, isto é fato. Mas numa UTI, como o nome mesmo diz, o paciente está em terapia intensiva, muitas vezes sedado, e vive um sofrimento mudo. A UTI é um dos últimos estágios, o próximo possivelmente será o óbito. Mas o paciente pouco tem a chance de externar seu sofrimento. Já o pronto socorro é o local onde ouvimos os berros, murmúrios e agonias dos pacientes que geralmente estão vivendo o mais alto nível de adrenalina da dor. Se for um paciente do SUS (Sistema Único de Saúde), esse estado geralmente se prolonga, pois grande é a demanda e precárias as condições de atendimento.

Pode parecer esquisito o que vou dizer, mas tenho a impressão de que tendemos a nos sentir mais confortáveis com a calmaria e o sofrer silente da UTI que com a gritaria e as feridas expostas do pronto socorro. No primeiro caso, o paciente pode estar muito mais próximo da morte e lentamente caminhando para ela, mas o silêncio traz consigo a sensação de estabilidade. No segundo caso, pode-se nem falar em morte, mas o controle da dor é menos intenso, e o resultado pode ser o sofrimento exposto, nu e cruamente. As feridas e a lamuria de Jó desvelaram seu pior lado no entender de seus amigos, o lado de quem passa a depreciar o dia de seu nascimento, desejar a morte e a questionar e contender contra o próprio Deus.

Jó estava em pleno pronto socorro de sua saúde física, emocional e espiritual, e aquilo incomodara profundamente seus amigos. “Vedes os meus males, e vos espantais”, o afirmou ao contemplar o visível escândalo de seus amigos. Como um justo, temente a Deus, pode chegar a uma situação como a de Jó? Se ele de fato era justo, a única saída não seria exclamar: “Isso é um absurdo!”, visto que “absurdo” seria o contexto em questão? Contudo, outra saída encontraram os amigos da onça: a de não admitir que um crente “verdadeiro” e inocente possa ter chegado a um pronto socorro. O sofrimento de Jó era efeito de uma causa única: o seu pecado. Eis o veredito de Elifaz: “Lembra-te: acaso já pereceu algum inocente? E onde foram os retos destruídos? Segundo eu tenho visto, os que lavram a iniqüidade e semeiam o mal, isso mesmo eles segam” (4.7-8).

Se a fé de Jó estava no pronto socorro, onde (de fato) estaria a de seus amigos? Bem longe do pronto socorro, certamente, pois nunca admitiriam ali estar – a fé do verdadeiro crente deve estar sempre vibrante e triunfante, não é assim? Se eles estivessem ali, padecendo junto, jamais repreenderiam as palavras desesperadas de Jó. Como ele mesmo indagou: “Acaso, pensais em reprovar as minhas palavras, ditas por um desesperado ao vento?” (7.26).

Em suma: a teologia dos amigos de Jó racionaliza tudo, até mesmo o clamor do desespero. Mas a teologia da vida ignora raciocínios e parcas compreensões na hora da dor, uma vez que se recusa a exprimir o inexprimível, ou tentar expelir um câncer com analgésicos. A teologia dos amigos de Jó, por sua vez, é capaz de reprovar a fé de quem se encontra no pronto-socorro enquanto a fé deles (religiosos de carteirinha) faz morada permanente na UTI. A teologia da vida deve nos fazer abraçar a dor, mesmo que ela não seja a nossa, e a não querer realizar tribunal em meio ao desespero humano. O desabafo requer acolhimento, sem maiores explicações.

(Continua...)

Jonathan

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