sexta-feira, 5 de junho de 2009

Transgredir - por Paulo Brabo

Transgredir, numa palavra, é fazer a narrativa avançar. Trata-se literalmente de “transpor uma linha”, “cruzar um limite”, mas não é coisa que esteja atrelada a qualquer necessidade ética ou nuance moral. É devido a esse agnosticismo moral da transgressão que o único valor absoluto abraçado pela narrativa é ela mesma, isto é, que a história seja contada.

Dito de outra forma, transgredir não equivale, de modo algum, a pecar; transgredir é exercer uma liberdade de escolha que é sempre terrível, porque cada escolha pode ter intenções e resultados bons ou maus. É por isso que se diz de quem transgrediu que “conheceu o bem e o mal”, porque sua escolha poderá ter resultados bons ou ruins – ou, mais propriamente, porque o transgressor terá de arcar com as consequências tanto boas quanto más da sua decisão.

Em termos narrativos, portanto, transgredir equivale a viver. Pedir um favor, dar um presente, declararar amor, declarar guerra, fazer amigos e ajudar um desconhecido – bem como atitudes puramente negativas e cautelosas como o recolhimento e a abstinência – envolvem, cada uma a seu modo, alguma modalidade de transgressão. O dilema moral não reside em transgredir ou não, mas em transgredir de que forma; isto é, de que forma fazer a narrativa avançar.

O médico transgride quando se interpõe no caminho da doença, o bombeiro transgride quando se interpõe no caminho do fogo; a viúva pobre transgride quando passa dia e noite exigindo justiça na porta da casa do juiz corrupto, e o juiz transgride quando faz justiça para aplacar a insistência da viúva. Se Romeu e Julieta não tivessem transgredido, reconhecendo seu amor diante um do outro e do mundo, seus descendentes correriam céleres e vivos entre nós em linhagens independentes; porém amaram e morreram, isto é conheceram o bem e o mal. Deus, naturalmente, é o mais assíduo e mais apaixonado transgressor, porque criou-nos o homem à sua imagem e semelhança e aqui estamos eu e você. Cada protagonista tem o conflito que merece.

Não devemos, portanto, cair na armadilha da serpente e procurar, nesta que é a narrativa primordial da transgressão, indícios de um pecado original, porque – não bastará nunca repetir – o pecado original não está no original. Neste que seria o momento ideal para fazê-lo, o texto irá se recusar, até o final, a chamar de pecado o que está prestes a acontecer. Daqui a um momento Adão e Eva terão transgredido e Deus dirá “agora o homem é como nós, conhecendo o bem e o mal”. Ou seja, o homem é como Deus no que transgrediu, e não no que pecou. Com Deus e como Deus, terá de arcar com as consequências da sua transgressão.

E, como homem, terá de arcar com as consequências do seu pecado. O pecado no entanto, não é resultado, causa ou efeito da transgressão. O pecado é injeção da serpente.

Paulo Brabo

Extraído de: http://www.baciadasalmas.com/

Um comentário: