sexta-feira, 1 de maio de 2009

Sobre teologia e a arte de nomear as coisas (I)

O ser humano moderno foi acusado pelos seus opositores, os pós-modernos, de naturalizar o conhecimento, isto é, de tentar dar ao conhecimento o caráter de algo que sempre aí esteve, à disposição, para se descoberto por meio do estudo dos objetos. O conhecimento, nesse sentido, seria algo dado, um produto pronto, prévio e independente da ação e intervenção humanas, cuja parte seria apenas a de apreensão e representação ou re-apresentação desse conhecimento. Os conceitos nasceram para dar conta do mundo, para ser uma designação fiel das coisas às quais eles remetem. Se digo, por exemplo, “Deus”, o dizer em si já remete à entidade a qual desejo designar. Parte-se do pressuposto da correspondência entre a palavra e a coisa em si.

Não foram só os pós-modernos que denunciaram a ilusão dessas pretensões modernas. Vozes solitárias no século XIX como a de Nietzsche, contribuíram para o questionamento das bases dessa quimera. Em um texto seminal, de 1873, intitulado “Verdade e mentira no sentido extramoral”, esse filósofo lança mão de aporias do tipo: por que razão o mundo se mostraria como ele é? Seria a linguagem um simples espelho da realidade? Assim, a partir de uma fábula possível, ele propõe a tese de que o conhecimento humano é relativo e que, portanto, é arrogante e ilusória a pretensão dos filósofos – teólogos, no caso aqui proposto – de querer “dar conta” da realidade a qual se referem.

Nietzsche parte da tese de que o conhecimento foi inventado. Isso na primeira frase do texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que os animas inteligentes inventaram o conhecimento”.[1] Na percepção de Michel Foucault[2], quando Nietzsche usa a palavra “invenção” tem sempre em mente uma palavra que se opõe à “invenção” – e que, diga-se de passagem, foi por muito tempo cara aos teólogos – que é a palavra “origem”. Quando ele fala que o conhecimento foi inventado, significa, portanto, que o conhecimento não tem uma origem, isto é, não existia antes de ser inventado, não é “dado” pelo universo.

Foucault usa um exemplo da análise desse filósofo, que é o da religião. Nietzsche critica seu mestre, Schopenhauer, que em sua visão cometeu o erro de buscar a “origem” da religião em um sentimento metafísico – como também fizera Friedrich Schleiermacher, para quem “religião é sentimento” – “que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial”. O protesto de Nietzsche, nas palavras de Foucault, é que essa é uma análise da história da religião “totalmente falsa, pois admitir que a religião tenha origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse sentimento metafísico”.[3] Em outras palavras, as religiões, assim como a cultura e a história, não são dadas, são fabricadas. Parafraseando Nietzsche, são fabricações da linguagem.

Com isso, parte-se de dois princípios: 1) somos irremediavelmente ligados à atividade de nomear; 2) “nomear é dar forma ao mundo”, pelo menos à parcela do mundo cabível à nossa compreensão e explicitada pela linguagem. Nomear não é nem representar, nem dar conta do mundo. Nomear é criar. Logo, o conhecimento – não um dado, mas uma produção – é apenas uma visão parcial do objeto conhecido. A linguagem conceitual não é uma tradução, mas uma invenção. Não há afinidade entre o conhecimento e seu objeto. Dizer “isso é fé”, não significa dar conta da coisa em si, fé. Mas essa é uma condição indissociável do conceito, que segundo Nietzsche nasce por “igualação do não igual”. Assim, todo conhecimento é uma violação de seu objeto...

(Continua...)

Jonathan

Notas

[1] NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53.
[2] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Naw, 2002, p. 14.
[3] Ibid., p. 15.

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