Devia ter nascido na idade média, quando a fé era aceita naturalmente; teria então visto claramente o meu caminho e entrado para o convento. Mas eu não podia crer. Tinha esse desejo, mas não podia acreditar num Deus que não era melhor do que um homem bom. Os padres me disseram que Deus criara o mundo para sua própria glória. Não me pareceu um objetivo muito apreciável. Teria Beethoven criado suas sinfonias para sua própria glória? Não acho possível. Em minha opinião criou-as porque a música em sua alma exigia expressão e, depois, só o que tentara fora torná-las perfeitas, na medida do possível.
Eu ficava a ouvir os monges quando recitavam o Padre-nosso. Como podiam eles, sem apreensão, continuar a pedir ao Pai Celestial que lhes desse o pão de cada dia? Por acaso as crianças pedem ao seu pai terrestre que as alimente? Esperam isto dele; não sentem nem precisam sentir gratidão; e não há quem não censure o homem que põe filhos no mundo quando não pode sustentá-los. A mim me parecia que, se um criador onipotente não podia prover às necessidades materiais e espirituais das criaturas, teria então sido preferível não criá-las.
(...) Se foi um Deus bom e todo-poderoso que criou o mundo, porque motivo criou o mal? Diziam os frades: Para que o homem, dominando os seus instintos maus, resistindo à tentação, aceitando a dor, a tristeza e a infelicidade, como provações enviadas por Deus como instrumentos de purificação, se tornasse finalmente merecedor da graça. Isto me parecia o mesmo que mandar um sujeito com um recado a determinado lugar e depois, para dificultar-lhe a tarefa, construir um labirinto por onde se veria forçado a passar, cavar um fosso que ele teria de atravessar a nado, e finalmente que ele seria obrigado a escalar.
Não estava em mim acreditar num Deus sábio que não tinha senso prático. Não vi a razão para não se acreditar num Deus que não tivesse criado o mundo, mas que procurasse corrigir, na medida do possível, aquele que encontrara; um ser infinitamente melhor, mais sábio e maior que o homem, que lutava contra o mal que não fora criado por ele, podendo-se esperar que no fim chegasse a vencê-lo. Mas, por outro lado, não vi também razão para se acreditar em tal Deus.
W. Somerset Maugham
Trechos do livro: O Fio da Navalha. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Trechos do livro: O Fio da Navalha. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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