quarta-feira, 11 de junho de 2008

Nietzsche e o cristianismo (II)

Segunda crítica: O cristianismo fala de amor, mas gera a imagem de um Deus algoz e sádico
O remédio do cristianismo para os males da humanidade é apontar a imagem de um Deus que é amor, consolo, abrigo. Mas, ao mesmo tempo, para que a coisa não seja assim tão gratuita, tão fácil, e para que haja a necessidade da religião, do re-ligare, ele precisa nutrir e propagar a existência da doença como mal moral inerente ao homem. Nesse sentido, o homem jamais se livrará do corpo desta morte e de suas intermináveis culpas escravizantes a menos que se renda ao remédio curador do cristianismo, expresso nos sacramentos, nos ritos, nas penitências e disciplinas. Como diz Nietzsche, “o cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (2006, p. 90).
Isso me faz lembrar do binômio prêmio-castigo, castigo-prêmio que se via na relação dos senhores de engenho com seus vassalos no período de escravidão negra no Brasil (séc. XVIII). Para não perder seu escravo, o Senhor devia dar alguns mimos e presentes de vez em quando para deixá-lo contente; por outro lado, se abrisse muito a guarda, o escravo poderia afrouxar na obediência; logo, o castigo também se fazia necessário a fim de que o escravo soubesse qual era o seu devido lugar, respeitando a autoridade do senhor. Na religião, a dinâmica é semelhante, mais do que pensamos. A violência e o abuso são simbólicos, quase imperceptíveis, mas tão danosos quanto os atentados ao físico, porque machuca a alma, o interior, e leva, muitas vezes, a uma viagem sem volta rumo à cela da angústia, depressão, loucura; ou a uma profunda decepção geradora de rupturas com a igreja e com o Deus que ela serve.

Vejo, mesmo que de longe, Nietzsche muito mais como um a-igrejeu, que, como corolário, tornou-se a-teu. O Deus que ele rejeita e até “mata” não é o Deus vivo, mas o Deus que já nasceu morto, das mortíferas consciências e corações dos fariseus modernos. É o Deus da lei, da ira, do castigo, do juízo e da condenação. É o Deus-produto das mentes humanas mórbidas e achatadas pela idéia de justiça contra a maldade que lhe é própria e contra tudo o que sua consciência afetada transforma em maldade, até as coisas bonitas, dádivas de Deus, mas que justiça alguma, a não ser a justiça graciosa do Filho de Deus, poderia redimir. Esse Deus tinha que morrer mesmo. Nietzsche declara sua percepção da seguinte forma:

Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente deformado. Depois o angustia o pensamento do mesmo ser, na medida em que este paira ante sua imaginação como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou pequenas, acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena, supera em atrocidade todos os outros terrores da imaginação? (Nietzsche, 2006, p. 94).

Logo, se essa idéia de Deus é geradora das mais cruéis e contraditórias mitigações da alma humana, a conclusão mais lógica para Nietzsche foi: “Acabando a idéia de Deus, acaba também o sentimento do ‘pecado’, da violação de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus” (2006, p. 96). Não temos como simplesmente julgar a falta de “discernimento espiritual” de Nietzsche (como se soubéssemos de fato o que é isso) e fechar os olhos para a plausibilidade da questão. A maneira como concebemos, entendemos e nos relacionamos com Deus; as idéias e imagens que forjamos e apresentamos aos outros acerca Dele, serão determinantes para a maneira como elas o receberão, seja com gratidão e alegria, com tristeza, medo e decepção, ou com adagas a fim de apunhalar e “matar” Deus, extirpando-o de vez de suas vidas.

É triste, mas boa parte de nossa teologia ainda hoje é marcada por um quinhão apocalíptico e tenebroso, que faz com que as pessoas se sintam como “pecadores nas mãos de um Deus irado”, como é o título do célebre e lastimável sermão de meu “chará” Jonathan Edwards. Ele conclui esse sermão do modo mais ameaçador possível: “Portanto, todo aquele que está fora de Cristo agora se desperte e fuja da ira futura. A ira do Deus Todo-poderoso está pendendo agora indubitavelmente sobre grande parte desta congregação. Que todos fujam de Sodoma” (Edwards, 2005, p. 51). Diga-se de passagem, o terror e o maniqueísmo que se vê nessa pregação de Edwards se tornaram marcas indeléveis da prédica protestante que chega ao Brasil e se propaga em nosso contexto até hoje.

Continua...

Jonathan

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