“Sem fé é a pessoa que diz adeus quando a estrada escurece” [J.R.R. Tolkien].
Alguns ateus costumam alegar que não aderem a fé, nem a Deus, porque são caminhos fáceis, que nos infantilizam, nos livram da dor de viver, de encarar (e abraçar) a vida como ela é, e nos transportam para outra vida, uma vida idílica, sem problemas, incertezas ou dor e, como consequência, promovem uma espiritualidade do sobrenatural, do metafísico, do etéreo. Particularmente penso que eles estão certos nestas alegações, pois sinto exatamente a mesma coisa quando olho para a espiritualidade cristã por muitos praticada, embora estas não sejam razões suficientes para que eu abandone a fé, ou para que ela seja de mim extirpada. Entretanto, não é nenhum absurdo pensar o contrário, ou seja, que a descrença seja um caminho fácil – no fundo, consinto que nenhum dos dois caminhos deveria ser enquadrado como “fácil”. Mas se eu tivesse que indicar um, escolheria a descrença, que é relativamente mais cheia de recursos de todo tipo (materiais, empíricos, lógicos, racionais) que o da crença, ou melhor, da fé – isto para quem, como eu, rejeito a apologética moderna. Isto, pois entendo – e não somente entendo, experimento na pele – que crer é particularmente difícil. Requer de mim o esforço de persistir, de aceitar, de descansar, em meios às minhas inúmeras inquietações, dúvidas e a própria “falta de fé” em certos momentos, cruciais eu diria.
De fato, não é necessário crer quando sua única fidelidade e confiança estão naquilo que vê, no mundo material, nas leis do universo, na vida que pulsa naturalmente, a única que realmente temos. A fé, por sua vez, torna-se imperativa no ser quando sensivelmente constata que nada disso é o bastante, quando a vida vira vaidade ou quando nada faz sentido, como se constata em Eclesiastes. Então, por que é que alguma coisa precisa existir (por trás e movendo os relances de eternidade que meu coração abriga) ao invés de nada? Aí é que está, não precisa existir; posso até concordar racionalmente que há grandes probabilidades de que tudo seja um nada, e de que este “nada”, misterioso e inescrutável, seja “tudo”. Mas meu espírito diz outra coisa; minha angústia também. Conduzem-me de novo a Deus, por mais resistente que eu seja a este nome ou ao que nossas ideias fizeram dele. Aqui reside o crer: crer a despeito da própria descrença, esperar contra a esperança. Esperar e agir, sem deixar de sonhar o real, vivendo-o.
Tenho sido assaltado por questões cruciais sobre a fé em Deus, e tenho questionado quase tudo, tanto que às vezes parece que não restará pedra sobre pedra ou chão para se pisar. E confesso: o ateísmo de certo tipo tem sido uma iminente tentação; não o ateísmo militante e pseudocientífico, mas aquele lúcido, de espírito irênico, que respeita a crença alheia sem deixar de se posicionar, e se posiciona de modo coerente, honesto, visceral também, embora sem abandonar a via racionalista ou existencialista, e por isso incomoda espíritos pensantes que são honestos para com suas dúvidas – já que nem todo pensante é honesto, embora quase todo honesto seja, por assim dizer, um pensante, uma vez que a honestidade parte do reconhecimento – e rejeitam simplismos e silogismos, ateístas ou teístas.
Por isso, a fé, para mim, é um desafio. Como permanecer crendo quando ‘Deus’ – ou seja, a ideia, seus sistemas ou as grandes narrativas de referência – está morto e a sua religião em ruínas? É preciso muito mais que o anseio por consolo e alento para manter a fé de espíritos honestos viva; antes – e este é meu caso –, é preciso a coragem de assumir-se como um não-ser sem fé, um não-ser sem Cristo. E que não quer a fé como refúgio do mundo, mas como modo de ser-ver-viver-agir no mundo. Quer, portanto, uma fé humana, uma fé mundana. Mais que o “salto no escuro” de Kierkegaard, crer é querer crer, como o homem que a Jesus disse: “creio, mas ajuda-me na minha falta de fé”; crer é crer que se crê (Vattimo) ou acreditar em acreditar, e é ter razões mais profundas que as que, pelas limitações próprias de nossa finitude, cabem na razão, razões da sensibilidade última de cada ser, razões nem sempre explicáveis ou demonstráveis.
A fé é aquilo que se mantém quando todos os seus adornos perdem sua razão de ser, e quando só sobra o seu alfa e seu ômega, que não se retém em linguagem ou conceito algum, mas que, na falta de um nome melhor e condizente, e conquanto dele é preciso falar, prossigo chamando de ‘O eterno’, ou simplesmente ‘Deus’.
Jonathan
6 comentários:
O que tenho vivido, e pensando, que quando escolhemos pensarmos e refletimos sobre nossa fé e vida é trilhar o caminho mais difícil, eu me vejo como alguém andando uma corda bamba, onde de um lado está o ateísmo racional e do outro uma fé vivida por muitos, uma fé totalmente irracional, e de vem quando me desequilibrando as pra um lado, as vezes pro outro, mas quando olho para um lado e para o outro tenho certeza que estou no caminho certo. O desafio da minha fé, ou da falta dela, acaba me levando a conhecer a Deus de uma forma diferente.
Saudade das reflexões do início de aula.
Abraço Jonathan
Oi Paulo, surpresa boa esse teu comentário. De fato, a vida na fé é uma guerra constante, e nem Jesus prometeu que seria fácil. Mas, como você mesmo reconheceu, é na dor que e no conflito que a gente cresce mais, e é em meio às dúvidas que a fé amadurece. Um abraço.
Jon
Continuemos no diálogo.
Essa frase: "Particularmente penso que eles estão certos nestas alegações...", para mim soaria melhor se fosse: "Particularmente penso que eles [parcialmente] estão certos nestas alegações".
Pq?
Porque na frase seguinte você diz: "...olho para a espiritualidade cristã por muitos praticada...". Veja bem. Esse "muitos" deveria então ser "todos" para que a primeira afirmação fosse correta.
Esses ateus de espírito irênico equivocam-se (segundo o que você diz que eles afirmam) ao dizerem que a fé leva para o além, uma vida idílica, sem problemas, incertezas ou dor. Certamente, não podemos negar que uma corrente do cristianismo pensa assim mesmo. Pensa negando a realidade. Ou seja, vivem numa inocência de que as coisas que estão experimentando não são reais. Tem cristãos idiotas.
Por outro lado, sei e conheço gente que mesmo exercitando a fé tiveram que passar por intensas provações. A fé foi inclusive a causa motivadora para o sofrimento. A fé não os levou ao paraíso, mas ao "inferno".
A realidade do sofrimento é uma só para todos: ateus e crentes. Uns preferem passar por ela não crendo em nada; outros crendo em Deus e outros ainda negando que estão sofrendo.
Estou terminando de a leitura de Hermann Hesse, "Minha fé" (recomendo) e esse homem que passou por várias fases religiosas escreve:
"... nunca dar (ou prometer) mais do que tenho. Eu sou um sofredor da angústia do nosso tempo, mas não um líder para sair fora dela; fui escolhido para atravessar essa aflição como um inferno, na esperança de que do outro lado haja uma nova inocência e uma vida mais digna, mas não estou em condições de me desfazer daquele "além" em troca de um "aqui e agora". Não acredito que a minha vida não tenha sentido, que eu não tenha missão alguma. A perseverança do meio do caos, a capacidade de esperar, a humildade diante da vida, mesmo onde a aparente falta de sentido aflige, também são virtudes, principalmente numa ocasião em que nos esclarecimentos da história do mundo, novas atribuições de sentido da vida, novos programas de toda espécie se encontram tão banalizados" (escrito em 1932).
Fraternalmente,
acbarro, o menor
Oi AC,
Obrigado por seus comentários. Certamente você está certo, tanto quando sugere que devo acrescentar um "parcialmente" ao texto citado, quanto na crítica à crítica ateísta, em geral reducionista mesmo. Por isso é que, em meu cap. 2, afirmo que a crítica nietzschiana por exemplo não é justa para com o todo da tradição judaico-cristã sobre a questão do valor à vida e ao corpo, por exemplo. Esse texto é o fragmento de uma confissão. Será melhorado até o fim do capítulo em que ele estará presente. Um abraço.
saudações de um leitor de Itu/SP. (vc não me conhece, embora eu tenha te abordado em um dos intervalos do seminário Semeadores).
Felipe Pondé, em entrevista a Cristianismo Hoje, disse que como filósofo, ele é ateu. E eu pensei: veja bem, como filósofo, porque a existência talvez não se explique num discurso filosófico.
Tem um texto que achei interessante, de um italiano Eugenio Trias (nem sei bem quem é esse cara, mas ele aparece no livro "A religião", organizado por Derrida e Vattimo, de onde tirei o trecho que reproduzo a seguir):
"É inegável a força explicativa de todas as variantes discutidas na filosofia da suspeita, nas quais o fenômeno e a experiência religiosa passam pelo julgamento e veredicto de um determinado conceito de razão (idealista, materialista, genealógico ou psicanalítico). Mas não se pode, nessas abordagens, ignorar um método de difícil discussão: em todas elas a religião é explicada de fora de si mesma. Parte-se da premissa, racionalista e ilustrada, de que a religião, por si mesma, é ilusão, ideologia, conceito inadequado, enfermidade, falsa consciência.
Sua verdade e seu sentido não podem se encontrar no horizonte da experiência e no espaço de jogo (jogo lingüístico ou pragmático) no qual se manifesta. Supõe-se que sua verdade e seu sentido se encontrem atrás, sempre atrás, num substrato inconsciente ou subjacente do qual o filósofo, o cientista ou o pesquisador deve remover os espinhos (e o qual deve também desmascarar).
A religião, na medida em que é cobaia da razão, é conduzida até o tribunal da ciência, da razão (ou da genealogia da vontade de poder), com o objetivo de ser examinada, interrogada, experimentada e questionada. Toda a riqueza e variedade da experiência religiosa e dos “jogos lingüísticos” por ela promovidos é então reconduzida, seguindo sua inconsciente verdade, até essa via de mão única que, de maneira autoritária, se estabelece em tais discursos como razão exclusiva.
Mas talvez seja o momento de dizer, em voz alta e com toda a clareza e contundência, que logos e razão não têm o mesmo sentido. Lógos é o signo que distingue o sujeito humano, o que o identifica e capacita como humano. E esse logos manifesta-se e esparrama-se em uma multidão, complexa e misturada, o que Wittgenstein chamou de “jogos lingüísticos”. Cada um desses jogos tem, em princípio, sua lógica imanente, sua verdade e seu sentido. E mais, são jogos “lingüísticos” nesse sentido radical (antropológico e ontológico), que permite pensar a linguagem como o que distingue o humano propriamente dito."
ok, no final ele assume um discurso dentro da filosofia da linguagem (e o texto continua nessa linha). mas minha vida tem estado neste dilema: a experiência religiosa é rica demais para ser preterida em favor de uma racionalidade reducionista. não consigo viver sem fé (ainda que cambaleante muitas vezes), graças a Deus (parafraseando o final do título de seu livro, muito bom, aliás)
Excelente, Jonathan.
Sinto algo muito semelhante. Caminho hoje sobre o mar da dúvida, me alimentando da práxis cristã não-dogmática. Autores como Paulo Brabo, Peter Rollins, Vattimo e outros me dão esperança.
Mas se tenho uma certeza é que esse nosso modo de crer é melhor do que a fé cega nos dogmas. Só crê piamente que Deus está no controle, quem nunca viu a pobreza e a dor.
O problema é que a crença não é, para mim, uma aquiescência intelectual, mas uma prática. Cremos não naquilo que nossa mente afirma, mas naquilo que fazemos. Não estou sendo tão ruim quanto aqueles que usam Deus (essa palavra também me dá problemas) para seus interesses maléficos? Falarei disso no meu próximo post no meu blogue. Ainda reflito sobre possíveis respostas.
Abraços,
Adair Neto.
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