sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

III. A espiritualidade, para além do narcisismo

O que essa incursão no papo de filósofos e psicanalistas tem a ver propriamente com a espiritualidade cristã no mundo atual? Para vias de uma brevíssima e superficial avaliação: tudo, eu diria. Não apenas pelo fato de o mundo (pessoas) atual continuar sendo, à sua maneira, óbvia e previsivelmente narcísico, mas pelo tipo de ser humano que ele engendra, separado muitas vezes de sua própria humanidade e distinção pessoal. E se isso realmente representa uma negação da vida, como me faz acreditar Rosset, também representa uma negação de Deus, visto que o que é anti-vida aponta para o que é anti-Deus.

E a igreja, que deve ser instrumento de fomentação de uma espiritualidade cristã saudável – ainda que muitos entendam esse “saudável” como algo relativo – também acaba militando contra a vida todas as vezes que instiga, pela via do discipulado, da pregação e outros meios, tipos ou modelos ideais de santidade e espiritualidade baseados em exemplos não somente antiquados (para a época), mas, o que é pior, anti-humanos, que por sua vez nada têm a ver com o evangelho, cuja pregação e vivência implicam em transformação do ser, sim, só que pela via da aceitação – “vinde como estás” – e não do jugo ou da culpa.

Maior prova de aceitação divina de tudo o que somos não há senão aquela expressa pelo “está consumado” de Jesus na cruz. A santidade e espiritualidade que não provenham da assunção da cruz como vocação e aceitação da graça do “está consumado” como princípio de existência, pode estar mais perto do inferno que do céu, ao contrário do que muitas vezes se pretende.

Não estou defendendo o encobrimento de pecados, como se toda culpa fosse negativa. Porque, como adverte Paul Tillich, “ser aceito não significa que a culpa está negada”. Há, como se sabe, um nível de culpa sadio, que deve produzir arrependimento na pessoa diante de Deus. Mas há também uma falsa culpa, doentia, produzida por um senso equivocado do lugar do ser humano na economia da graça e do amor de Deus. Assim, nosso papel como igreja não passa pela condenação, muito menos pelo encobrimento; é o de ajudar uns aos outros a avançar em estatura na fé, transformando “os sentimentos de culpa deslocados, neuróticos, em genuínos, que são, por assim dizer, colocados em seu lugar certo” (Tillich, "A coragem de ser", p. 129).

Jonathan

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

II. O âmago da ferida aberta em Narciso

E a ferida narcísica se abre outra vez quando a ilusão é desmascarada, como explicita Clément Rosset: “Pensava-se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto seu duplo enganador e tranqüilizador” (Rosset, 2008, p. 92).
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Isso me faz refletir acerca de quantas vezes (impossível contar ou trazer à consciência) não precisei nutrir uma imagem idealizada e, como tal, ilusória de mim mesmo a fim de poder continuar apreciando minha vida. A razão para existir como pessoa às vezes pode provir das fontes mais enganadoras e despersonalizadoras possíveis, sem que mesmo nos demos conta. Obscuridade própria do que é subjetivo.
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A vida como ela é, bem como o “eu” tal como ele é, pode ser uma pílula amarga de se engolir. Daí nosso doentio desespero e azedo gosto pela representação – e o que mais poderíamos esperar de nosso olhar para a realidade? Assim, de acordo com Rosset (2008, p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem”.
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E quando a representação deixa de ser suficiente para apaziguar o eu, Narciso? Quando o angustiado se vê essencialmente duvidando de si mesmo, ele precisa então (ou conjuntamente com a obstinação por sua própria imagem) de outro testemunho, o testemunho de outro, exterior a si. E este é “o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro” (Rosset, 2008, p. 108). A baixa estima – caracterizada pela psicanálise como efeito paradoxal do narcisismo – em relação a seu eu (o original), pede, portanto, o outro, tranqüilizador: o testemunho (ou idolatria) de uma pessoa, que reforce o real, que ressalte o duplo.
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Eis-me então, Narciso que sou, diante da mais viciosa das dependências: a da sempiterna aprovação e confirmação, seja pela auto-imagem de si mesmo ou pelo testemunho externo, de meu duplo, daquele que eu gostaria de ser. Negação de mim, incurável ingratidão. E, como bem observa Rosset (2008, p. 93), “esta recusa do único, aliás, é apenas uma das formas gerais de recusa da vida”.
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Na análise de Paul Tillich dessa negação e desespero, é compreensível, segundo ele, “que toda vida humana possa ser interpretada como uma tentativa contínua de evitar o desespero. E essa tentativa é, na maior parte, bem sucedida” (Tillich, 1972, p. 43). E o que é a religião, muitas vezes, senão o “santo” remédio, ou essa quase sempre bem-sucedida tentativa de pelo menos aliviar o desespero humano mais óbvio e de manter as pessoas longe da realidade de quem elas são e de quem o mundo é?

Jonathan

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

I. Narciso e o duplo do real

O assunto despertou minha atenção casualmente, em função da leitura feita por um filósofo francês, Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008). Ali ele desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa.

Ao abordar o mito narcísico, Rosset afirma que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si, não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas sua fixação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação (desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo, para além do desespero de não ser.

A mortalidade – preceito de que a existência tem um fim previsto, embora o momento do fim seja imprevisível – já afirmara Paul Tillich em A coragem de ser (1972), é uma das grandes fontes geradoras de aflição e ansiedade no ser humano, à medida que ela representa uma ameaça constante ao ser. Contudo, como assevera o próprio Tillich (1972, p. 42), “se a ansiedade fosse só ansiedade do destino e da morte, a morte voluntária seria o caminho para sair do desespero”, de tal maneira que a coragem requerida não seria a de “ser”, mas a de “não ser”.

Nesse sentido, as perspectivas de Tillich e Rosset se aproximam, à medida que este último defende que a angústia do sujeito, mais do que a própria morte, provém de sua não-realidade, sua não-existência. Em outras palavras, a pessoa narcísica sofre por perceber que o ideal de si não corresponde à realidade, que é cruel. Sendo esta cruel, ele precisa de outra “dose cavalar” de seu duplo, sua representação, que oferece, segundo Rosset, não a si mesmo, “mas seu outro, seu inverso, sua projeção segundo tal eixo ou tal plano” (Rosset, 2008, p. 91).

A “ilusão voluntária” consiste no efeito psicológico tranqüilizador produzido pela representação no espelho; no encontro com meu outro, penso estar em contato comigo mesmo.

Jonathan

Série: Eu, um narcisista?

A história de Narciso é bastante conhecida. Na mitologia grega, Narciso era um belo rapaz, que havia resignado-se de se entregar a ninfa Eco, que por sua vez desejava-o ardentemente. Assim sendo, ele recebeu como punição uma espécie de maldição, passando a adorar incontrolavelmente sua própria imagem refletida na água. A angústia de Narciso diante da insatisfação promovida por essa bizarra paixão, conduziu-o ao desespero de se suicidar por afogamento.

Os termos “narcisismo” e “narcisista” são popularmente utilizados como se referindo a uma pessoa extremamente vaidosa, egoísta ou orgulhosa. Sua versão em círculos acadêmicos recebeu, é claro, devido aprofundamento. Narcisismo seria mais do que simples (pela complexidade que o termo envolve) vaidade humana. Na psicanálise freudiana, narcisismo indica uma tendência libidinosa pela qual o indivíduo lida com seu corpo da mesma forma como lidaria com um objeto sexual, “contemplando-o, afagando-o e acariciando-o até obter satisfação completa através dessas atividades” (Miranda, Vieira Paulo & Cruz, 2009, p. 150).

Bem, a psicanálise oferece diferentes representações para o narcisismo, presente nas diversas condições da vida de uma pessoa, o que não me compete aqui nomear ou analisar*. Meu interesse é trazer um breve olhar sobre alguns possíveis reflexos de um tipo específico de narcisismo na espiritualidade cristã, a partir de um foco analítico em particular de matiz mais filosófica, que, por conseguinte, permitirá uma releitura teológica.

Jonathan

Nota

*Para fins de uma familiarização maior com o conceito em si e outras possibilidades de aplicação à espiritualidade cristã, sugiro a leitura do excelente artigo de Daniel Leite Guanaes de Miranda, Anna Christina Vieira Paulo e Simone Cabral da Cruz: “O narcisismo, a construção de laços sociais no século XXI e sua influência na espiritualidade evangélica contemporânea”, publicado na Revista Práxis Evangélica, número 15. Londrina: FTSA, 2009, p. 149-168.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O pronunciamento - Por Paulo Brabo

Os quatro eram teólogos e estavam mortos, mas suas indignações não descansavam.

– Numa crise dessa magnitude – disse o primeiro – seria impreterível que Deus não se esquivasse, como tem feito com demasiada frequência, de um pronunciamento oficial. O ideal seria que ele lesse pessoalmente, em cadeia planetária, uma nota redigida por nós.

– Se ele continua se recusando a liberar os recursos celestiais para as operações de salvamento e reconstrução – disse o segundo – o absoluto mínimo que ele deveria fazer seria manifestar de forma inequívoca sua solidariedade pelas vítimas e familiares. Repito: o absoluto mínimo.

– O que também não pode ser contornado indefinidamente – exigiu um o terceiro, abrindo seu laptop e apontando para uma pasta impossivelmente repleta do seu Google Reader – é o caso do comportamento temerário de Pat Robertson e de seus asseclas. Esses andam dizendo, em nome de Deus mas evidentemente sem o seu endosso, que a calamidade é intervenção divina, castigo aplicado devido à impenitente simpatia dos atingidos pela ortodoxia errada. Seria conveniente que no seu pronunciamento Deus deixasse bem claro o seu distanciamento dessa posição.

– Pelo contrário – asseverou um quarto, como se já viesse aguardando esse momento. – Em seu pronunciamento Deus deverá endossar cada palavra de seu servo Pat Robertson, de modo a expor as mentiras dos liberais e confundi-los publicamente. Tendo em vista a posição oficial da divindade com relação à sua própria soberania, inaceitável é o que andam afirmando os teólogos liberais: que Deus nada tem a ver com o desastre em questão e que, como se não bastasse, nada poderia ter feito para evitá-lo. Desnecessário apontar que é essa a posição sem qualquer precedente escriturístico, sendo além de tudo heresia defendida há séculos por ateus desprovidos de qualquer mérito.

E, apesar das suas diferenças doutrinárias, nos dias que seguiram os teólogos conseguiram redigir uma nota contendo sete pontos essenciais sobre os quais os quatro concordavam, a respeito da origem do mal e da posição divina diante das grandes calamidades. Deixaram o documento na caixa de sugestões do céu, que não tem fundo, juntamente com uma carta de apresentação e um abaixo-assinado com poucas assinaturas, mas de prestígio.

A resposta demorou meses a vir, e chegou endossada por um número impossivelmente abundante de selos, rubricas e carimbos, cada um atestando a passagem do processo por uma repartição celeste.

“O último pronunciamento oficial da divindade foi abraçar uma plena humanidade e morrer, e no intervalo entre uma coisa outra investir seus esforços em mitigar os sofrimentos dos homens e reparar as injustiças a que se submetem mutuamente, tendo deixado instrução para que seus seguidores vivessem e morressem dessa mesma forma. Não existe qualquer previsão para uma revisão deste pronunciamento, e a divindade não encontra-se disponível para esclarecimentos adicionais. A primeira vez em que foi visto publicamente Deus estava com as mãos sujas de barro, e na sua última aparição pública ostentava as cicatrizes de sua paixão pelos seres humanos. A administração do céu não reconhece outro lugar onde Deus possa ser encontrado, ou outra maneira pela qual possa ser reconhecido”.

– Lamentáveis essas respostas automáticas – disseram os teólogos uns aos outros, e passaram o resto da tarde lamentando a burocracia celestial.

Paulo Brabo

Extraído de: http://www.baciadasalmas.com/

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Confissões velhas em um ano novo

Poderia iniciar o ano cheio de planos, projetos, fôlego renovado, e muita vontade de fazer uma série de coisas diferentes do que fiz no passado. Há muito por fazer nesse ano, não muito diferente do que foi no ano passado; tenho sonhos bons e projetos fascinantes pela frente. Por isso, penso nisso sim (sem um pouco de luz, quem sobreviveria?); mas, agora que dei um tempo na urgência do “fazer”, tenho pensado em outras coisas, tais como velhos modos de ser que se perpetuam inadvertidamente ano após ano, em relação aos quais as festas e ornamentações rebuscadas de fim de ano tentam me manter distante, mas não conseguem...

E o que me faz nesse tempo de grande euforia, misturada com calmaria, arrazoar a esse respeito? Sei lá, talvez uma compulsão estranha por balanços, avaliações, conversas com a alma, fruto de uma inquietude que não se afasta de meu ser, mesmo quando estou “fora do ar”. Tem gente que prefere não falar, outros preferem ignorar, outros quem sabe são tão relaxados com tudo, que não veriam nada de errado em coisa alguma; todas as coisas são como as rosas. Pode ser; só que minha tendência é pensar: rosas também têm espinhos. E espinhos são coisas que machucam com o toque; espinhos na carne.

Quando vivo tempos de grande alegria e tranqüilidade penso na bondade, experimento a graça divina nas pequenas coisas, expressão do cuidado paternal. Em meio a isso tudo, ainda me encontro com os tais espinhos na carne. Parece que, não obstante impere o espírito de descanso, meus erros infantis não tiram férias. Pode alguém fugir da parte de si mesmo que mais detesta? Acho que não. Paulo estava certo: o mal que eu detesto, esse eu faço; e o bem que eu prefiro, esse eu não faço. E o estranhamento que às vezes paira, é semelhante ao do salmista: “Por que estás abatida, oh minha alma, por que te perturbas dentro de mim?”. Ano novo, velho jeito de ser. Não fossem as misericórdias, que se renovam, e a graça (que eu quero continuar a crer que me basta), o que restaria? Nuvens, neblina, vaidade...

Ao mesmo tempo, resolvi há certo tempo, que nada de humano me seria mais estranho. Então por que agora estranho esse meu modo humano, “demasiado humano” – Kierkegaard diria “paradoxal” – de ser? Às vezes penso que sofro da síndrome de coerência – e quem é capaz, por mais que tente, de ser coerente o tempo todo? Então oro pra que Deus me ilumine rumo a uma vida coerente, e que Ele me livre das máscaras de uma falsa e pretensa coerência. Quero consistência, abomino a mera superficialidade. Quero aprender a viver um dia de cada vez, e dar tempo para que os velhos cacoetes, produzidos pelo pecado que habita em mim, entrem no estado de progressiva partida, ou que pelo menos possam ser controlados, no alvorecer da maturidade e do progresso na fé, em relação ao qual não desejo ficar estagnado, jamais.

Nesse ano novo, graças a Deus, e em nome da sanidade, ainda não me encontrei com as falsas promessas e esperanças, muito menos com agendas que nada têm a ver com a realidade e com o que sou; encontrei tão somente a mim mesmo, nu diante do espelho de velhas confissões, e mais nu ainda diante de Deus – quem poderia fugir de sua presença? – imerso em migalhas não sistemáticas do pensamento, frangalhos de sentimentos, porém, ainda confiante de que a graça me basta! Porque quando sou fraco, então é que sou forte. Acima de tudo, muito mais do que não ignorar a voz às vezes confusa da alma, não quero ignorar a voz do Pai, que não me abandona nunca: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração como foi na provocação, no dia da tentação do deserto” (Hb 3.7).

Jonathan